Descrição de chapéu Perspectivas

Filmes premiados recuperam interesse humanista pelo indivíduo

Boa parte das obras mal chega a ter uma história propriamente dita, mas não abandona uma narrativa

Chico Fireman

Alguns dos melhores filmes deste ano não são sobre política, mas não deixam de ser políticos. 
Outros são biografias sobre pessoas que não existem, o que não os impede de serem profundamente humanistas. Boa parte deles mal chega a ter uma história propriamente dita, mas não abandona uma narrativa, nem um discurso.

A temporada de festivais internacionais de cinema no Brasil, que aconteceu entre setembro e novembro em algumas das maiores cidades do país, revelou que, entre os melhores filmes do ano, alguns são sobre coisas invisíveis: sentimentos, relações, o que nos conecta com o outro, com o mundo, com nós mesmos.

“Amanda”, do francês Mikhaël Hers, é um bom exemplo. Como tantos, o filme é sabotado por qualquer sinopse. Exibido na Mostra de Cinema de São Paulo, o longa pode parecer banal quando se lê sobre sua trama, já que é difícil não cair na tentação de limitá-lo à mera consequência de um “evento transformador”. 

homem e menininha num caminhão
Cena do filme "Amanda" (2018), de Mikhaël Hers - Divulgação

A narrativa ficcional tem por tradição se mover a partir de “episódios”, e o cinema absorveu bem esse conceito, cristalizado no “Manual do Roteiro” de Syd Field. O autor define que a estrutura ideal de um longa-metragem seria formada em três atos —apresentação, confrontamento e resolução—, com cada etapa separada por algum grande acontecimento, uma reviravolta.

O filme de Hers, que chega ao circuito em 2019, tem, sim, um acontecimento que desestabiliza seus protagonistas, mas não segue o modelo óbvio de causa e efeito. O diretor se apropria de um assunto do momento para falar de como revelamos nosso interior a partir de estímulos externos. É um filme sobre a dor da decisão, sobre seguir em frente e assumir responsabilidade. 

Se outros cineastas destacam que o estado natural do homem é mau, Hers parece acreditar que a generosidade nos é intrínseca e que ela se revela justamente quando precisamos acolher e demonstrar amor.

Amor pode parecer um assunto ingênuo numa época em que as redes sociais funcionam à base das consequências do discurso de ódio, que expõe intimidades, espalha inverdades e vence eleições. Mas enquanto a fúria feriu amizades de morte e apunhalou famílias na vida real, os filmes ajudaram a construir laços sólidos entre estranhos.

Em “Assunto de Família”, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, o japonês Hirokazu Kore-eda investiga o que faz a relação entre duas pessoas verdadeira e o que é realmente uma família. Os protagonistas curam sua solidão caçando companheiros, parceiros, cúmplices.

O diretor fecha tanto o foco que parece chegar à essência daqueles relacionamentos, que partem da autopreservação para a manutenção do clã, com direito a todos os desacertos e todas as fragilidades que a vida pode ter.

Mas o que determina o amor? O que nos move em relação a outra pessoa? Será que estamos condenados a ruminar para sempre amores que já se foram? As perguntas que “Asako I e II” —com lançamento prometido ainda para dezembro— lança parecem sair de cadernos de adolescentes. Não à toa, a fonte do filme é um romance popular. 

Mas Ryûsuke Hamaguchi elabora uma discussão profunda a partir da história sobre o amor de uma mulher por dois homens idênticos. No meio do caminho, namora o fantástico e sugere o duplo para logo se dedicar ao uno. Transforma uma confusão de identidades numa discussão estranha, e assim única, sobre amor.

homem e mulher deitados no chão
Cena do filme "Asako I & II", de Ryûsuke Hamaguchi - Divulgação

Cada um à sua maneira, esses filmes nos fazem perguntar: será que o cinema contemporâneo, tão obcecado em retratar o mal-estar dos tempos atuais, em apresentar um discurso “de impacto” que o classifique como obra de conteúdo social, “corajosa”, será que este cinema que usa o truque das surpresinhas e reviravoltas, que abusa do explícito, será que ele encontrou outro caminho, que recuperou o interesse pelo indivíduo, que voltou a ser humano?

Em “Conquistar, Amar e Viver Intensamente”, prêmio do público no Festival Mix Brasil, o diretor Christophe Honoré faz uma escolha ousada. Retrata os anos iniciais da epidemia do HIV, mas escolhe as pessoas e não a doença. O filme não quer ser um registro histórico nem um manual de comportamento sexual. Não quer mostrar personagens derrotados pelo vírus, punidos pelo pecado do “amor proibido”. A morte é o destino final, mas o foco é a sobrevivência. Sem drama, sem culpa, sem necessidade de expiação.

Sob as leituras punitivas e de segregação espalhadas como metástases nos dias de hoje, o longa de Honoré poderia ser interpretado como um filme irresponsável, que desperdiça ou ignora sua função social, quando seu verdadeiro papel social é encontrar o humano dentro daquela situação, o humano culto, sedutor, ainda capaz de amar e de ser amado. Honoré escolheu o lado mais difícil e desafiou a ignorância.

dois homens no cinema
Cena do filme "Conquistar, Amar e Viver Intensamente" (2018), de Christophe Honoré - Divulgação

Em comparação, “A Nossa Espera”, do francês Guillaume Senez, é menos provocador, mas também apresenta seu protagonista a partir do que ele carrega dentro de si, e não pelo golpe que sofreu. O personagem de Romain Duris reprisa o drama do “herói” de “Amanda”: sacrificar o pessoal ou assumir uma responsabilidade? De novo, o “evento” é só o motivo para que se discorra sobre sentimentos, angústias e dúvidas.

Como nos melhores filmes do ano, há uma espécie de otimismo em relação ao que está por vir, mesmo que esse sentimento não esteja na superfície. Todos esses filmes olham primeiro para o humano. É aí que o invisível fala mais alto. 


Chico Fireman é jornalista e crítico de cinema filiado à Abraccine.

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