Descrição de chapéu Perspectivas

Grupo de artistas reage contra pauta anti-imigração da direita alemã

Rede 'Os Muitos' reúne diversas vertentes das artes contra investidas que julgam xenófobas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Silvia Bittencourt

Faz algum tempo que artistas e diretores alemães vêm advertindo para o crescimento da extrema direita no país e denunciando agressões contra instituições culturais. A lista é longa e inclui ataques racistas contra atores, arruaças em eventos e ameaças a casas de espetáculo. 

Foi o que aconteceu um ano atrás com o Friedrichstadt-Palast, um dos mais famosos cabarés da Europa, em Berlim, evacuado por causa de uma ameaça de bomba. Também em Berlim, diretores já receberam ameaças de morte por encenar peças sobre refugiados.

Mas depois dos últimos conflitos na cidade de Chemnitz, no Leste, onde no final de agosto hordas xenófobas partiram para cima dos imigrantes da cidade, uma parcela considerável da nata da cultura alemã decidiu ir além do protesto.

Ela se reuniu numa rede chamada “Die Vielen” (“Os Muitos”) e lançou um manifesto, no qual não apenas se compromete a engajar-se contra racismo e nacionalismo, como também a intervir no caso de uma instituição sofrer qualquer forma de ataque de radicais da direita.

Seus idealizadores partem do pressuposto de que terão que lidar por muitos anos com a ação de grupos xenófobos e do partido de extrema direita AfD (Alternativa para a Alemanha).

sinalizador vermelho em meio a multidão
Manifestantes usam sinalizador durante ato antirracismo em Chemnitz, em setembro  - Hannibal Hanschke/Reuters

A AfD está hoje representada nas prefeituras e assembleias estaduais de todo o país e se tornou, em 2017, a terceira maior força política no Parlamento Federal. Desde então, descobriu a educação e a cultura como importantes campos de ação.

Como muitos apoiadores de Jair Bolsonaro no Brasil, também na Alemanha a AfD defende uma “escola sem partido” e incentiva denúncias contra professores. Pede cortes nos subsídios culturais, amplamente difundidos, e tenta influenciar a programação e a escolha de diretores de óperas, teatros e empresas de comunicação, que estariam nas mãos da “ideologia do multiculturalismo”.

Os “Muitos” querem agora ir contra essas investidas, promovendo atos pela democracia, tolerância e liberdade artística, e debater alguns conceitos propagados pela nova direita do país, como o da “renacionalização da cultura”. A defesa de uma cultura dominante alemã (“Leitkultur”) e o repúdio ao multiculturalismo norteiam o programa da AfD.

No caso de conflitos, ameaças ou agressões, os signatários do manifesto comprometem-se a organizar atos de solidariedade, abrir espaços para eventos de última hora e apoiar instituições pequenas e do interior, contra as quais é maior a pressão de grupos radicais. “Mexeu com um, mexeu com todos” é o lema da campanha, também abraçada por nomes avulsos do meio artístico.

Pouco depois dos conflitos em Chemnitz, por exemplo, o ator Ulrich Matthes (“A Queda – As Últimas Horas de Hitler”) incluiu a cidade em sua agenda para ler em público baladas de Friedrich Schiller (1759-1805). O poeta alemão, segundo Matthes, acreditava na consciência do ser humano e, com seus versos, tentava construir pontes entre as pessoas.

Os “Muitos” conseguiram reunir mais de 300 instituições já no lançamento do manifesto, que aconteceu simultaneamente em várias cidades, em 9 de novembro —uma data cheia de simbolismo na Alemanha, pois nesse dia, em 1918, houve a proclamação da República; 20 anos depois, aconteceu a Noite dos Cristais; e, em 1989, caiu o Muro de Berlim.

A grande maioria dos signatários vem da capital. Entre eles estão representantes do establishment cultural —como a Berlinale, a Academia das Artes, os teatros Berliner Ensemble e Maxim Gorki e as três grandes óperas—, mas também órgãos mais alternativos, como os teatros Grips e Ballhaus. Este último tornou-se um importante palco para produções de diretores imigrantes.

Muitos outros signatários são, curiosamente, de Dresden, capital da Saxônia. Conhecida como “pérola do barroco alemão”, a cidade é considerada a metrópole cultural do Leste. Mas foi lá que surgiu o Pegida (sigla em alemão para “Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente”), um forte movimento xenófobo que há anos promove passeatas contra a política migratória da chanceler Angela Merkel.

Dresden tenta agora consertar os arranhões profundos que o Pegida causou na sua imagem. Só ali assinaram o manifesto mais de 50 instituições, como a Filarmônica, a Ópera Semper e os importantes museus em torno do palácio Zwinger.

Os “Muitos” querem agir regionalmente, mas programam para maio um grande protesto conjunto em Berlim. O grupo até tem uma bandeira. Ela é dourada e cintilante, lembrando os cobertores de emergência dados aos refugiados quando são resgatados no Mediterrâneo. 


Silvia Bittencourt, jornalista e tradutora baseada na Alemanha, é autora de “A Cozinha Venenosa” (Três Estrelas).

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.