Poema inédito faz raio-X do jeitinho brasileiro

Livro "Entre Eu e Ele", de Alípio Franca Neto, chega às livrarias no primeiro semestre de 2019

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Alípio Correia de Franca Neto

[SOBRE O TEXTO] O poema foi extraído do livro “Entre Eu e Ele”, que o autor deve lançar pela Ateliê Editorial no primeiro trimestre de 2019.

 

Para uma desconstrução 
da frase “jeitinho brasileiro”

I
Sabemos de onde é originária
a frase a toda uma nação,
já vinda à luz com uma questão
identitária —
a forma fácil e ligeira
de um médico húngaro ter visto
de residência com um registro
de agrônomo em carteira.
Marca do que é atribuído à raça —
a “simpatia” e o “senso prático”
ante o transe burocrático
que a frase passa
a consagrar, no mundo inteiro,
com o esquecimento da atitude e o
testemunho de repúdio
do estrangeiro.
Essa acepção inicial,
uma improvisação de formas
de contornar ou leis ou normas
sendo cordial,
trazia um eco sobretudo
de um dito desses dias antigos,
aos inimigos, leis, a amigos,
tudo,
(aliás uma expressão datada,
só em parte válida, uma vez
que nada impede usar as leis
em prol de um camarada)
mas, em virtude de ocorrências
nas mais estranhas circunstâncias,
a frase foi ganhando nuanças;
conotações mais densas;
sentidos duplos. Acadêmicos
lhe dedicaram teses,
a analisando por vieses
por vezes polêmicos.
Uns viam um significado
positivo naquela frase,
nomeando uma reação à “estase”
de instituições do Estado,
ao caráter coercitivo
das suas leis, no fundo, a origem
dos descontentes, que as infringem,
e do seu “dom criativo” —
já outros, um sentido grave,
tornando ambíguos nos contextos
sentidos antes manifestos
de termos-chave —
exemplo: lei, ou um termo afim,
se com o significado claro
de não, passava a ter não raro
o de talvez... ou sim —
lei, antes tida por geral,
vinha a evocar um para quem?,
passando a conjugar também
a ideia de pessoal —
se a frase dava outro sentido
a lei, podia deixar confuso
quanto às noções comuns e ao uso
do termo indíviduo —
um fato mais flagrante quando
um indivíduo A falava
a um B, vexado, sem palavra,
“sabe com quem tá falando? —
esse indivíduo, usado a quem
falava, com o valor de um nome,
e o outro indivíduo, o do pronome
ninguém.

II
Diversas vezes eu também
vim a sentir, e a crer, no fim
que eu era exatamente assim —
ninguém —
e a me calar. Uma postura
passível de calar mais fundo
em quem nasceu e cresceu num mundo
sob censura,
no qual um sentimento intenso
de constrição, uma tensão
contínua pela imposição
de silêncio
já preparava um teor difícil
a ser expresso —isso que é parte,
conforme se imagina, da arte.
E se a ética do ofício
proíbe o que é o menor vestígio
de “saídas fáceis”; se dispensa
a autoridade ou a influência
de “amigos de prestígio” —
já que requer dizer, cabal,
o inadmitido, sobretudo
de um “jeito próprio”, o qual é tudo,
menos “cordial”
é obrigação tentar, à míngua
de altas teorias sobre a frase,
uma interpretação com base
na língua:
se hoje sabemos que nações
não se reduzem nunca a termos,
são só noções parciais que temos,
discursos, narrações,
e, usada a toda zona turva
social, a frase expressa tanto
de uma nação inteira quanto
um termo guarda-chuva,
minha leitura é que a cada hora
que a frase volta a ser usada
pra um fato, e não se diz mais nada,
se vira, vai embora,
é tão-somente o tom de voz —
todo afetivo, permissivo
desse nosso diminutivo —
que diz algo de nós.

ilustração
Ilustração - Aureliano Medeiros

Alípio Correia de Franca Neto é poeta e tradutor.

Ilustração de Aureliano Medeiros, quadrinista e ilustrador, autor de “Mercúrio Cromo” (Lote 42).

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