Descrição de chapéu Perspectivas

Qual é a função de peças e filmes se o público quer que acabem o quanto antes?

Sob a forma do entretenimento fácil ou do consumo desprovido de atenção, o que era experiência se torna farsa

Felipe Arrojo Poroger

31 de agosto de 2018, a Ilustrada publica: "Para driblar a impaciência do público, produções cortam espetáculos teatrais; reduções de texto e enxugamentos de intervalos são formas de atrair espectadores temerosos da duração das peças".

Leio a notícia pelo celular. É de manhã e o metrô está cheio. De pé, um sujeito assiste a um seriado no smartphone. Ao lado, a namorada lê um livro de capa lustrosa, enquanto ouve um pop qualquer. Sem desviar os olhos da tela, o rapaz às vezes puxa algum assunto. 

Ele sabe: esboçar um papinho rápido faz parte das obrigações mínimas de um relacionamento. Ela sabe: é educado abaixar o volume da música para demonstrar interesse. Assim os dois seguem, até a estação de destino, divididos entre o amor, os livros, as músicas, os seriados e o mundo que talvez os cerque.

mulher segura celular no teatro
Celular em teatro - Ricardo Borges/Folhapress

Paris, 1931. Um incômodo crescente atinge um renomado escritor francês. Atordoado pela grande variedade de obras expostas no Museu do Louvre —onde quase três milênios de história abrigam-se sob o mesmo teto—, Paul Valéry declara: "O ouvido não suportaria dez orquestras ao mesmo tempo".

A imagem não poderia ser mais didática: se dez orquestras não se podem fazer ouvir simultaneamente (ao menos, não se quisermos apreender a beleza de cada uma delas), como uma multiplicidade de obras de arte podem conviver lado a lado sem que isso destrua seu valor individual? "Um quadro mata todos ao seu redor", completa o escritor, e "o homem moderno (....) se empobrece pelo excesso de suas riquezas. O que fazer? Nos tornamos superficiais".

Ainda que quase 90 anos separem a melancólica constatação de Valéry, o episódio banal do metrô e a nova realidade das produções culturais, não parece descabido supor que haja entre elas uma relação de parentesco ou de radicalização de sintomas.

Dentre as perguntas que poderiam ser esboçadas a partir da correlação entre esses eventos, uma parece evidente: que função, afinal, a arte estaria exercendo na sociedade se o público, embora não desista de consumi-la, prefere que seja rápida e termine o quanto antes?

Por mais evidente que seja a conclusão de que a cultura possa fornecer uma imagem de qualificação pessoal, esta explicação isoladamente ainda parece um tanto simplista. Afinal, se insistirmos somente nessa lógica, concluiremos que consumir arte é o mesmo que comprar um sapato, um carro, uma bolsa —como se a esfera cultural (e o uso que dela faz o mercado) não tivesse componentes específicos.

Cabe, então, uma outra pergunta: o que o mundo contemporâneo falha em fornecer ao sujeito e que apenas (ou principalmente) o campo artístico pode suprir, nem que seja como ilusão? A resposta, suponho, está no elemento que tanto assombra os produtores de cultura: a estreita relação entre arte e tempo.

Para constatar a problemática ligação que a contemporaneidade estabelece com o tempo, não são necessários grandes fundamentos teóricos —a experiência cotidiana dá conta: seja no culto às novidades e à juventude, seja nas tentativas de reviver costumes de décadas passadas ou na rapidez com que produtos e relações se tornam descartáveis, a nós parece totalmente estranho ter com o tempo uma relação que se não viva como degradação ou angústia.

Feito as 24 horas dos stories de Instagram, não somos mais construídos para durar, somos feitos para estar e esquecer.

Nesse cenário, como sintoma, torna-se natural —ao preço de uma dose cavalar de ansiedade— que o cotidiano passe a se lançar em tentativas incessantes (e farsescas) de reconstrução de certo elo perdido, uma espécie de resgate desesperado de experiências passadas que possam suprir as lacunas deixadas pela desorientação do presente.

Será nessa busca —a busca do tempo perdido, afinal— que a arte, como construção simbólica que se perpetua na civilização ocidental há mais de 2.000 anos, assume sua posição central: trazendo consigo uma promessa de vínculo à história, a continuidade de um hábito ancestral, a arte promete certa comunhão de experiências essenciais para lidar com as mazelas da existência humana.

Sob a forma do entretenimento fácil ou do consumo desesperado desprovido de atenção, o que era experiência se torna farsa. E é justamente isso que o incômodo de Paul Valéry expressa: ao tentarmos apreender múltiplas narrativas simultaneamente, nutrindo a esperança de que a soma possa preencher o vazio de experiências duradouras, o que fazemos é justamente matar o tempo.

Matar o tempo. Uma expressão tão usada no cotidiano, sobre a qual pouco se pensa, mas cuja precisão é assombrosa: encontrar uma distração enquanto se espera por algo maior. 

Quando lutamos por peças teatrais menores, filmes menores ou maneiras de suavizar o silêncio e a contemplação que uma boa obra exige —sem, no entanto, deixar de consumi-la—, estamos propondo uma conciliação de fachada: garantimos a sensação de vínculo ao tempo e à história, minimizando, porém, a angústia de se colocar no compasso de espera que exige a boa contemplação.

Contemplar, afinal, é um tormento, pois, enquanto se observa, supõe-se que nada se constrói. 

O silêncio é dolorido, já que, quando não se ouve nem se fala, a solidão encontra terreno. Em um mundo de otimização, de subdivisão do cotidiano em nichos, está preenchido quem consome a vida em partes. Não à toa, no metrô, o rapaz assistia a um seriado. Poderia ser eu. E com razão: talvez esse seja mesmo o melhor paliativo.

E assim a vida segue em multimídias, a arte em pílulas, o passado em falta e, nas páginas de outro livro francês, dessa vez de Simone de Beauvoir, ainda se pode encontrar escrito: "A terra está ao meu redor como uma vasta hipótese que jamais verifico".


Felipe Arrojo Poroger, cineasta graduado em filosofia pela USP, é diretor do Festival de Finos Filmes. 

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