Bolsonaro foi a agulha que estourou a minha bolha, diz escritor

Diante de 'murro na cara' com eleição, autor lamenta ter ignorado força conservadora

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[RESUMO] Diante de ‘murro na cara’ com eleição de Bolsonaro, autor vê seu círculo de esquerda em desespero, lamenta ter ignorado força conservadora e lembra artigo escrito por britânico após o ‘brexit’.

 

“É como levar um murro na cara, só que bem devagar. Deveríamos ter visto o punho vindo em nossa direção.” É assim que Tom Whyman abre um artigo publicado na edição de agosto de 2016 da revista piauí (“Nenhum país é uma ilha”, tradução de Sergio Tellaroli). 

O jovem filósofo inglês tratava de seu sentimento em relação ao “brexit”. À época, li o texto na cama, como sempre faço. O hábito me ajuda na batalha diária contra a insônia, por mais árido que seja o tema. As reflexões de Whyman, entretanto, só me trouxeram angústia e sudorese noturna. Melhor teria sido recorrer aos ansiolíticos, como faço com alguma frequência.

Para surpresa de muitos, a opção pela saída do Reino Unido da União Europeia acabara de vencer em um plebiscito. A proposta de levar tal possibilidade à consulta popular existia desde 2013, mas, como admitia o filósofo, não recebeu a devida atenção até que fosse tarde demais.

Sim, imagino que muitos leitores já tenham adivinhado o paralelo em questão. Porque, neste exato instante, ainda tratam dos hematomas e escoriações do murro na cara sofrido no final de outubro.

Paralelos entre o “brexit” e a eleição de Jair Bolsonaro não são exatamente uma novidade: algo já foi dito sobre as circunstâncias políticas, sociais e econômicas envolvendo os dois fenômenos. 

Mas como o artigo me abalou tanto ainda em 2016? E como pude me identificar com alguém que, ao menos supostamente, vive em uma realidade diferente da minha?

Porque quando falo “me identificar”, não me refiro a um trecho, um sentimento ou uma ideia específica. A uma vaga e distante empatia pelo ponto de vista de Whyman. Ao sorrisinho de canto de boca que surge quando, para nossa surpresa, um desconhecido descreve de modo claro e preciso uma sensação ou ideia que nos é cara e pairava difusa ao nosso redor.

Eu queria abraçar aquele filósofo inglês sobre o qual eu nunca ouvira falar, olhar fundo em seus olhos e, talvez com uma lágrima a escorrer pelo canto do olho, dizer: “Tamo junto”. 

Demorei um tempo para tomar coragem e reler o texto após a vitória de Bolsonaro. Ao fazê-lo, o que era identificação virou quase um exercício de futurologia: como é que esse cara sabia que era exatamente assim que eu e “meu círculo” estaríamos nos sentindo?

Por “círculo”, entenda “casta”, muitas vezes chamada de “bolha”. Somos a tal da “esquerda cirandeira”, a “burguesia folclórica”. Whyman, mesmo britânico, tem muito em comum com ela.

Somos os jovens adultos do Ocidente, progressistas, estudados, liberais nos costumes e antenados com as mazelas do planeta. Acreditávamos piamente e ingenuamente que, apesar dos percalços, continuaríamos a ver a humanidade progredindo. Seguiríamos vivendo em um mundo cada vez mais globalizado, informado e atento aos direitos humanos e às preocupações ambientais. 

Não importava se de tempos em tempos alguém tentasse atrasar esse movimento: a humanidade aprendera com seus erros, e sob hipótese alguma nos veríamos na iminência de precisar enfrentar novamente aqueles episódios horríveis sobre os quais só sabíamos por meio de livros, filmes e reportagens. 

“O que procuramos, então? Para que trabalhar, afinal de contas? De modo geral, penso que, privados da perspectiva de obter segurança, optamos pela ‘experiência de vida’. Jamais teremos dinheiro para ser prósperos, mas —dada a rede de segurança que representa o imóvel que nossos pais possuem— temos o suficiente para pelo menos tentar fazer algo interessante.”

Acredito que este é o trecho que mais aproxima o estado de espírito de Whyman com o de seus “semelhantes” brasileiros. Podemos nos matar de trabalhar sem conseguir acumular nada, isso quando temos uma oportunidade para trabalhar, mas nossa mente aberta e plural permite que experimentemos, sem preconceitos, toda novidade exótica oferecida por este mundo pleno de possibilidades. Se tal ideia é —ou era— verdade, é outra história. Acreditávamos nisso em algum nível.

No parágrafo em questão, o autor escancara qual é, afinal, o sentido da vida para os integrantes da “bolha”. “Brexit” e Bolsonaro são a agulha que ameaça estourá-la. Ou que já a estourou. Os brinquedinhos que estavam em seu interior, as ilusões e ideiazinhas de “comunistas”, agora jazem espalhadas pelo salão de festas. Resta saber se alguém ainda correrá para catá-las, como em outras épocas.

“É isso, porém, o que o ‘brexit’ tem a dizer sobre o Reino Unido. Que ele vem se tornando cada vez mais racista, xenófobo e fechado —o tipo de lugar que não deseja acolher estranhos, coisas novas e culturas ou valores diferentes”, escreveu o filósofo. Em 2016, o impeachment de Dilma Rousseff era o fato político que mais aproximava o sentimento de Whyman ao meu e ao da “bolha”. O que dizer agora?

Algumas pessoas mais velhas por vezes nos olham surpresas quando nos mostramos histéricos com os rumos da nação, mas devo lembrar a elas um ponto que considero muito importante: minha geração e as que vieram logo em seguida cresceram no período mais estável da história do Brasil. 

Aquele Brasil tosco, fechado e de instituições democráticas ainda com reboco aparente é quase uma abstração para quem, como eu, é um filho da classe média nascido em 1981. Brade contra os governos FHC ou Lula, eu e meus colegas de “bolha” usufruímos de um privilégio gigantesco. É quase constrangedor se dar conta disso só agora. Deveriam passar a nos chamar de “geração E”, de enganada, ou “B”, de bobinha. 

Minha única lembrança daquele outro país é minha confusão ao nunca saber quanto dinheiro pedir para minha mãe ao descer para comprar uma coxinha no boteco. 

Lembro também o impeachment de Fernando Collor, em 1992. E aqui minha memória já é nítida o suficiente para ter certeza de que não se tratou de um momento triste para o país, mas virtuoso. Assisti à votação da Câmara pelo impeachment e vibrei com minha mãe a cada voto a favor anunciado por um deputado. 

Muito diferente, então, de 2016, quando acompanhei a votação pela cassação de Dilma ao lado de amigos em prantos e em um certo clima de fim do mundo. Vimos Jair Bolsonaro dedicar seu voto a um torturador, sem saber que o verdadeiro murro na cara ainda não alcançara nossos narizes.

Porque não adianta mais nos trancafiarmos no nosso mundo de preocupações sociais, poliamor, festas com gente de rosto pintado e bambolês gigantes: nosso país agora é definitivamente comandado pelo motorista raivoso da SUV, o agroboy descamisado do festival de Barretos e a tia reacionária que sempre suportamos, porém desprezamos. 

Esses personagens do Brasil real sempre ocuparam o inconsciente da “bolha” como espécies de arquétipos odiosos. Gostemos ou não, “eles” chegaram ao poder e ignorá-los será bem mais difícil daqui para a frente. 

Amigos que nunca dispararam sequer uma arminha de água agora discutem no grupo de WhatsApp —seriamente— se é o caso de aproveitar a provável flexibilização do acesso às armas para fazer aulas de tiros e adquirir algumas delas.

A retórica do presidente eleito e seus asseclas conseguiu a proeza de despertar o instinto de sobrevivência até em camadas historicamente privilegiadas da sociedade. Aprendemos, do jeito mais doloroso, que não há recuo da maré capaz de nos alertar —e salvar— do tsunami da história. Quando ele vem, resta tentar alcançar um lugar mais alto para, primeiro, sobreviver e depois entender o que diabos aconteceu. 

“Eu não era o único que, em decorrência do resultado da votação, tinha passado a viver naquele tipo particular de ansiedade febril”, diz Whyman sobre o sentimento de “desespero do ‘brexit’”, detectado à época por pesquisas de opinião.

“O mundo parecia ter mergulhado deliberadamente na estupidez e no caos. Para mim, um sujeito de 27 anos precariamente empregado numa universidade como professor de filosofia, tudo parecia estar fugindo ao controle”, desabafa o filósofo.

“Tudo o que eu conseguia fazer era ficar sentado diante do computador, atualizando os sites de notícias, aguardando por novas postagens nas mídias sociais e esperando que os acontecimentos viessem a fazer um pouco mais de sentido.” 


Daniel Lisboa é jornalista e escritor.

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