Conto descreve vulto no lugar onde Antônio Conselheiro foi enterrado; leia

Escritor faz micronarrativa provocado por leitura de 'Os Sertões', de Euclides da Cunha

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Marcos Vinícius Almeida

[SOBRE O TEXTO] O autor escreveu a micronarrativa inédita nesta página provocado por uma leitura de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha.

 

Quando o exército republicano marchou sobre os escombros de Canudos, num domingo de 1897, havia mais cadáveres despedaçados do que cacos de tijolos e entulho. Ninguém foi enterrado, nenhum nome escrito na pedra. Antônio Conselheiro estava morto, dentro de uma igreja em ruínas, cravejada de chumbo. Três soldados, por ordem do general, reverteram o enterro do corpo sem alma, arrancaram sua roupa e lhe cortaram a cabeça já sem vida. Essa foi a segunda morte do conselheiro monarquista.

“Quem não reagiu está vivo”, escreveu o general, em seu diário de campanha.

Getúlio —que tinha alergia de missa— mandou construir um açude, em 1940. E o sertão de Canudos —outrora profetizou Antônio—, virou outro mundo: água que só. Esse era o fim de tudo, talvez. Não fosse a insistência do sol, e da terra, de sede infinita, chupando tudo pra baixo, levando a água pra longe. Nada se apaga. Tudo retorna.

E vez por sempre uma ponta de igreja, uma lasquinha teimosa, ruinazinha rancorosa, emerge das águas. E vai assombrando seu Marcílio, com seus olhos esfumaçados, de pura catarata. Em noite sem lua, e de vento frio, ele diz escutar um vulto —meio encorpado, meio bexiguento—, pairando sobre as águas. Um tipo esquisito de santo —sem reino, sem língua—, endemoninhado. Dá pra escutar uma tosse, uma limpada de garganta —diz seu Marcílio. É a cabeça do conselheiro caçando o corpo.

Eu paro o ouvido. E espero. 
Mas é só vento e friagem. 

cabeça decapitada no deserto
Ilustração - Pedro Ghion

Marcos Vinícius Almeida, escritor e jornalista, é autor de “Paisagem Interior” (Penalux, 2017).

Ilustração de Pedro Ghion.

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