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Ficção científica se expande com diversidade de autores e subgêneros

Autor reflete sobre situação do gênero no Brasil e no mundo para além das distopias best-seller

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Fábio Fernandes

A ficção científica no Brasil vai muito bem, obrigado. Não é de se espantar: em tempos sombrios, qualquer forma de arte que traga novas perspectivas ou explore cenários inusitados (e talvez, de certa forma, ofereça um descolamento da realidade cotidiana) traz sensação de frescor, de alívio temporário das dores do mundo.

E esse gênero literário, ao contrário do que os estereótipos propagam, não tem nada a ver com alienação. Um exemplo eficiente para ilustrar essa ideia é “O Conto da Aia” (1985), de Margaret Atwood, transformado em série de TV em 2017.

A narrativa é composta pelos diários da vítima de um governo fundamentalista religioso que dera um golpe nos Estados Unidos. O estilo não é muito diferente do de outra distopia, o clássico “1984” (1949), de George Orwell. A ficção científica tem diversos tipos de narrativa, e, como se vê, neste momento as distopias parecem ser o mais relevante deles.

 

Mas não só: nos últimos anos, a ficção científica deu grandes passos no caminho de uma expansão que está mudando de modo irrevogável o gênero. O principal foi a inclusão: narrativas escritas por mulheres, LGBTs e negros começaram a ter vez e voz —e a ganhar prêmios, como no caso inédito da série de livros “A Terra Partida”, da autora afro-americana N.K. Jemisin, que faturou o Hugo Award (o maior prêmio de ficção científica mundial) por três anos consecutivos com cada um dos livros da trilogia.

A autora foi traduzida e publicada no Brasil pela editora Morro Branco, que, junto com outras como Record e Aleph, tem trazido autoras importantes para o gênero, como Octavia E. Butler (1947-2006), Naomi Alderman e Emmi Itäranta.

Outro tipo de ficção científica que está fazendo sucesso por aqui é o cyberpunk. Criado nos anos 1980 como parte de um movimento que tinha entre seus membros o americano William Gibson, autor do clássico “Neuromancer”, o gênero hoje é mais uma ficção de aventura que de reflexão —mas sempre em um cenário distópico. 

Gibson, aliás, acaba de ganhar o título de “grand master” da ficção científica norte-americana, concedido pela Science Fiction Writers of America. Honraria mais do que merecida para alguém que, entre outras coisas, legou para a posteridade a criação da palavra “ciberespaço”, que hoje é sinônimo de internet.

No Brasil, temos um número cada vez maior de escritoras e escritores de ficção científica. Muitos dos mais recentes começaram as carreiras usando a plataforma Wattpad, uma rede social para autores em formação. Vários têm usado também o Kindle, ferramenta da Amazon, para publicar no formato digital. 

Entre as pequenas editoras mais conhecidas no mercado, o destaque vai para a Draco, de Erick Santos, que se especializou no gênero e tem no catálogo diversas obras não só de cyberpunk mas também de steampunk e até de um novo subgênero ecológico, o solarpunk. Uma antologia com esse título, organizada por Gerson Lodi-Ribeiro, foi traduzida para o inglês por mim em 2018 e publicada pela World Weaver Press.

Alguns autores interessantes que lançaram novas obras em 2018: Aline Valek, com seu livro “As Águas-Vivas Não Sabem de Si”; Ricardo Labuto Gondim, com “Corrosão”; Eric Novello, com a distopia para jovens adultos “Ninguém Nasce Herói”; e Lu Ain Zaila, com sua coletânea de contos e ensaios afrofuturistas “Sankofia”. O afrofuturismo, aliás, chegou com tudo ao Brasil, pelas mãos de Lu e de Fábio Kabral, autor de “O Caçador Cibernético da Rua 13”.

O ano se encerrou com um livro que é referência na área não só para pesquisadores, mas para qualquer leitor do gênero, seja especialista ou iniciante: “Fractais Tropicais”.

Organizado por Nelson de Oliveira e publicado pela editora do Sesi-SP, o volume reúne três gerações de escritores de ficção científica no Brasil. Essas gerações, classificadas como ondas (termo criado pelo escritor e pesquisador Roberto de Souza Causo), reúnem pioneiros do gênero, como Jerônymo Monteiro e André Carneiro, passando por autores da segunda onda, Octavio Aragão e Lúcio Manfredi, até escritores da terceira fase, Santiago Santos e Cristina Lasaitis.

Em parceria com Oliveira, um dos maiores escritores dentro e fora do gênero, publiquei a noveleta cômica “Oneironautas”, incursão num subgênero mais ligado ao surrealismo, o new weird. Em 2019 um romance meu na mesma linha, com menos humor e mais acidez, sairá pela editora Patuá, de Eduardo Lacerda: “Back in the USSR”.

Não somos os únicos: outras editoras brasileiras, como a Monomito, já anunciam para este ano coleções de livros de ficção científica. Estamos muito bem, obrigado. 


Fábio Fernandes, doutor em comunicação e semiótica pela PUC-SP, é professor do curso de tecnologia e mídias digitais da instituição.

Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do informado na legenda da galeria, a escritora  Margaret Atwood é canadense, e não norte-americana. O texto foi alterado.

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