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Para lidar com políticos intolerantes, inspire-se em Voltaire, diz autor

Diante das mentiras, é preciso ter perspicácia e paixão pela justiça, escreve Robert Darnton

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Robert Darnton
The New York Times

Estamos vivendo uma mudança climática na política. Preconceito, bullying, desonestidade, vulgaridade... Tudo o que é emitido pelos tuítes de Donald Trump e ampliado por seus simpatizantes danifica a atmosfera da vida pública. A camada protetora de civilidade, que torna o discurso político possível, está desaparecendo como o ozônio ao redor da Terra.

Como podemos recuperar um ambiente saudável? Não há soluções simples, mas algumas figuras históricas oferecem exemplos edificantes. A que eu menciono aqui pode parecer um tanto improvável, mas ele foi um homem que transformou o meio de seu tempo: Voltaire, o filósofo francês que mobilizou o poder dos princípios iluministas na Europa do século 18.

Tudo bem, sei que só um acadêmico como eu faria uma proposição dessas. Quem é que, nos EUA, tem algum interesse em Voltaire? Os universitários às vezes leem "Cândido" como um conto, que o público já aplaudiu como a opereta de Leonard Bernstein, mas o livro termina com um refrão que soa como o quietismo: "Cultivemos nosso jardim."

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O filósofo francês Voltaire (1694-1778) - BBC/Getty Images

Na verdade, acho que essa última linha, que está entre as mais famosas da literatura, deve ser compreendida como um apelo ao engajamento. "Cultivo" aqui significa um compromisso com a cultura, a civilidade, a própria civilização. E é esse o meu argumento.

Para quem depara com Voltaire pela primeira vez, ele pode dar a impressão de ser uma curiosidade histórica: sua peruca arcaica e o humor libertino parecem pertencer a um canto esquecido do passado.

Pior ainda, pode ser considerado conservador, tendo se insinuado entre os poderosos, principalmente Luís 15 —e se imiscuiu tão profundamente no sistema cultural desenvolvido sob o regente francês anterior, Luís 14, que, se fosse hoje, seria reprovado em qualquer teste de correção política. Além disso, opôs-se à educação das massas, porque, como dizia, alguém tinha de cuidar da lavoura.

Bom, então esqueça a peruca, mas repense a sagacidade. Nada é mais eficiente do que ridicularizar um racista intolerante, colocando-o em seu devido lugar. "Sempre fiz uma única oração a Deus, e bem curta: 'Ó Senhor, torne meus inimigos ridículos.' E Ele me atendeu", escreveu.

A primeira das duas armas mais poderosas de seu arsenal era o bom humor: "Temos de trazer o riso para o nosso lado", instruía a seus auxiliares nos salões de Paris.

A ridicularização funciona fora deles também; nos EUA, temos Stephen Colbert na TV, tivemos H. L. Mencken no jornal e Mark Twain nos livros. Porém a perspicácia pode soar elitista, e Voltaire cultivava a elite, especialmente durante a juventude, quando exaltava a riqueza, os prazeres e as boas coisas da vida. Seu poema "O Mundano", escrito em 1736, é uma apologia do luxo terreno —"o supérfluo, uma coisa tão necessária", escreveu ele, em oposição ao ascetismo cristão.

Esse era Voltaire, o jovem libertino; entretanto, hoje, em meio à nossa crise contemporânea, sugiro inspirarmo-nos também em Voltaire, o idoso revoltado. Foi na velhice, durante as décadas de 1760 e 1770, que ele usou sua segunda arma mais poderosa: a paixão moral.

Em 1762, Voltaire ficou sabendo de um crime judicial: o Parlamento de Toulouse condenara um mercador protestante, Jean Calas, a ser torturado e executado por supostamente ter matado o próprio filho, cuja suposta intenção era se converter ao catolicismo. Acontece que não só as suposições estavam erradas, como havia fortes evidências da inocência de Calas.

Para Voltaire, o caso representava muito mais que um erro judiciário: simbolizava as atrocidades infligidas aos protestantes durante mais de dois séculos. Eles tinham sido assassinados, expulsos do país, forçados à conversão ao catolicismo e privados de seus direitos civis, inclusive o de se casarem e herdarem propriedades dentro da lei. Além da perseguição aos protestantes, Voltaire viu uma intolerância generalizada e, além dela, a barbárie.

Pegou a caneta e compôs "Tratado sobre a Tolerância", uma das defesas à liberdade religiosa e aos direitos civis mais brilhantemente escritas até hoje. E também enviou cartas, centenas delas, a todos os seus contatos na elite poderosa: ministros, cortesãos, líderes da sociedade e colegas filósofos.

Mexeu com todo mundo, dos mais poderosos aos mais insignificantes, manipulando a imprensa da época com tanta habilidade que criou uma verdadeira onda na opinião pública, que acabou levando ao reconhecimento dos direitos dos protestantes em 1787, nove anos após sua morte.

Voltaire terminava muitas dessas cartas com um grito de alerta: "Écrasez l'infâme", ou "Acabem com o infame" —termo que, para ele, ia além da intolerância, incluindo a superstição e as injustiças de todo tipo.

O conceito oposto ao da tolerância obscureceu valores mais amplos, incluindo a civilidade, virtude de que tanto necessitamos hoje em dia e que Voltaire identificou com a civilização.

Voltaire viu o triunfo desta última sobre a barbárie como o bem supremo inscrito no processo histórico —e deixou a mensagem bem clara em sua obra mais ambiciosa, "Essai sur les Moeurs et l'Esprit des Nations", "Ensaio sobre os Costumes e o Espírito das Nações", uma pesquisa da história do mundo que publicou pela primeira vez em 1756, mas revisou e continuou expandindo até sua morte, em 1778.

A que mais podemos aspirar na era Trump? A oposição à intolerância e a defesa dos direitos civis novamente pedem um engajamento com a causa da civilização. Exigem paixão moral temperada com argúcia.

Cultivem jardins. Écrasez l'infâme.


Robert Darnton é professor emérito da Universidade Harvard.

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