Descrição de chapéu Memorabilia

Peça de Tchékhov está em um limbo, assim como nós, diz Tolentino de Araújo

'O Jardim das Cerejeiras' está entre um tempo que já acabou e outro que não começou, segundo diretor

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Eduardo Tolentino de Araújo

Existem três grandes movimentos dramatúrgicos no mundo: os gregos, os elisabetanos e os russos. A Revolução Russa começa nas artes, com Dostoiévski, Tolstói, Turguêniev, Górki, Púchkin, Gógol e por aí vai. Anton Tchékhov é a quintessência do realismo: o mais expressivo autor dramático dessa plêiade de russos.

Na definição do diretor Giorgio Strehler: Tchékhov é como uma matrioska. A camada mais evidente conta as histórias pessoais dos personagens. Na de baixo, existe a história com H maiúsculo. Mas há ainda uma terceira: a que fala sobre a grande aventura humana.

A primeira peça que vi dele foi “As Três Irmãs”, na montagem do Teatro Oficina no início dos anos 1970. Eu estava começando a ver teatro, não conhecia Tchékhov nem Zé Celso —depois ele me disse que a montagem era bem esgarçada, a seu estilo daquela fase—, mas carrego imagens do espetáculo na cabeça até hoje.

Lembro-me de um ator, na cena do incêndio, correndo com uma tocha na mão, do diretor sentado num balanço e jogando vinho na plateia, de um duelo no qual um longo rastilho de pólvora cortava o palco de um ator até outro. Foi tudo um grande susto para mim.

Na minha geração, era parte da vida comunitária jovem ter uma vida cultural com cinema, teatro, shows. Havia uma sessão à meia-noite, no extinto Cinema 1, de filmes de arte que ainda iam ser lançados —e eu ia porque, no dia seguinte, todo mundo iria comentar na faculdade.

Numa dessas sessões, vi uma versão russa de “Tio Vânia”. Como era madrugada e eu estava cansado, achei uma monotonia completa. Até que começou a cena final: o solilóquio de Sônia. Aquilo me arrebatou de tal maneira que o que não fizera sentido até então passou a fazer. Resultado: quando o filme foi lançado, vi três vezes no cinema. Às vezes você não gosta de uma coisa por não estar alfabetizado naquela linguagem.

Começou ali minha paixão por Tchékhov. Um tempo depois, quando eu já estava imerso no teatro, Jorge Lavelli dirigiu “A Gaivota”, com Tereza Rachel, Renata Sorrah, Sérgio Britto e Cecil Thiré. O palco do Theatro Municipal do Rio foi transformado em arena, com arquibancadas em volta. Uma montagem deslumbrante: a melhor “Gaivota” que já vi.

Foi nessa época que passei a ler a grande dramaturgia, as peças de O’Neill, Ibsen, Shakespeare e, claro, Tchékhov —e me deparei com “O Jardim das Cerejeiras”. Fiquei apaixonado. A peça não era montada desde 1967 —voltou a sê-lo só em 1990, pelo Teatro dos Quatro—, então nunca a tinha visto no palco. 

Entre 1991 e 2005, viajei muito por causa de turnês com o Grupo Tapa, convites para dirigir fora, prêmios. E pude ver muitos Tchékhov e muitos “Jardim das Cerejeiras” —desde versões horrorosas, como uma velha, empoeirada no Théâtre de la Madeleine, em Paris, até a maravilhosa dirigida pelo alemão Peter Stein.

Nesse mesmo período, li “Ivánov” em inglês ou francês e identifiquei ali muita coisa relacionada ao momento que estávamos vivendo no Brasil, com FHC. Discutia a paralisia da intelectualidade em um terreno infértil. Comecei a cotejar traduções junto a pessoas do elenco, até que decidi encomendar uma versão literal para Arlete Cavaliere, professora de letras da USP. Essa tradução acabou editada pela Edusp, com nossa coautoria, e, para minha surpresa e orgulho, concorreu ao prêmio Jabuti.

Foi a partir desse Tchékhov que o Tapa começou a fazer as próprias traduções. Em 1998, montamos o espetáculo, primeiro texto grande do autor e primeiro que nós fizemos dele. Foi um belo teste para deixarmos de ser um grupo adolescente e virarmos adultos.

Pensamos em montar outros, como “A Gaivota” e “As Três Irmãs”, mas sempre tive certeza de que alguma hora, no futuro, eu faria “O Jardim das Cerejeiras” —meu texto favorito, minha catedral de Chartres.

Até que, no ano passado, pensando nas comemorações dos nossos 40 anos, me dei conta de que o futuro é agora; não preciso esperar que o futuro dure muito tempo, como Althusser. Estou com 64 anos, não sei quanto tempo mais me sobra. E o texto tem muito a ver com o mundo em transformação no qual estamos vivendo agora.

Meu mundo era iluminista; hoje o mundo é digital. Aquele lugar onde eu nasci não existe mais. E talvez o “Jardim”, que retrata uma família aristocrática lidando com a devastação iminente de suas cerejeiras, seja a peça que melhor fale de uma transformação de eras.

Quando Tchékhov a escreveu, em 1904, não supunha que haveria uma revolução socialista na Rússia. Havia a efervescência de uma época que estava mudando —e estamos em momento parecido. Assim como nós, os personagens do “Jardim” estão no limbo entre um tempo que já acabou e outro que ainda não começou.

Não estamos em uma época politicamente definida: esse populismo de direita é passageiro. Já sabemos que alguns valores soçobraram, e certas pessoas ocuparam esse espaço vazio, mas estamos em uma transição —que sofrerá abalos, verá lideranças e ideologias aparecerem e algo novo florescer.

É um processo infindável. Talvez daqui a 200 anos a Terra seja um jardim devastado e o ser humano esteja partindo para Marte. E uma montagem dessa peça ainda será possível.

Certa vez trabalhamos com um diretor alemão, Peter Palitzsch, um dos fundadores do Berliner Ensemble, que tinha uma frase: “Quando a bomba explodir, o que você salvaria?”. Eu certamente iria para o abrigo com o texto de “O Jardim das Cerejeiras”. 


Eduardo Tolentino de Araújo, fundador do Grupo Tapa, dirige montagem de ‘O Jardim das Cerejeiras’ no Teatro Aliança Francesa até 25/2.

Depoimento a Walter Porto.

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