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Prateleiras gritam por livros que nascem das ruas, diz Sérgio Vaz

Para poeta e fundador do Sarau da Cooperifa, 'povo gosta de ler, só não sabe que gosta'

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Sérgio Vaz

Nos últimos meses, a crise que assola o país já há alguns anos também atingiu o mercado editorial, de forma que grandes livrarias quebraram as pernas como num livro de conto de fadas.

Os vilões são muitos. Desde o governo, que é o maior comprador de livros e já não compra mais, ao baixo índice de leitura dos brasileiros. Pesquisas apontam que lemos em média 2,46 livros por ano, já incluindo a leitura obrigatória nas escolas. Esses levantamentos consideram como agravantes o alto índice de analfabetismo, o preço do livro, a internet... E por aí vai.

Não sou especialista no assunto, mas, como muitos, estou triste com esse inferno de Dante em que a literatura se atolou. E talvez só a varinha mágica de Harry Potter possa nos salvar. Parece até praga de autor independente.

Como podemos falar de sonhos em meio a tanta crise?

Deve ser porque ainda há os Quixotes amantes das letras, que, alheios a tudo isso, enfrentam a realidade como se não fossem os miseráveis de quem tanto o livro foge.

Vai vendo o milagre da poesia.

Um grupo de amigos da favela de Heliópolis (na zona sul de São Paulo, com população estimada em 200 mil habitantes e que conta com uma biblioteca comunitária) sonhou com um projeto em que pudesse publicar livros dos escritores da comunidade, os sem-editoras como eles, para realizarem o desejo de ter seus livros editados.

Desassossegado como Fernando Pessoa, Paulo Cesar Mariano, ou simplesmente PC, poeta, ator e produtor cultural, não necessariamente nessa ordem, líder desses capitães da areia, foi contemplado pelo edital Rumos Itaú Cultural no final de 2018, o que possibilitará que esses autores registrem suas vidas nos becos da memória do seu país, Heliópolis.

Quando PC explica seu sonho para as pessoas, ele não fala, recita: “Quero que os jovens, por meio desse projeto, se aproximem da literatura, e que o livro circule livremente entre nós”.

No início dos anos 2000, os saraus pipocaram nas periferias de São Paulo, e os botecos se tornaram centros culturais, cinemas e bibliotecas. Por mais exótico que possa parecer, muita gente chegou ao livro por meio da palavra oral. E hoje posso afirmar que as quebradas nunca leram tanto como nestas duas últimas décadas.

Acho que o povo gosta de ler, só não sabe que gosta. Nosso desafio é lembrá-lo desse detalhe: que o livro é nosso amigo. E antes que a gente anuncie que as ilusões estão perdidas, não esqueçam: os morros uivam por conhecimento.

A literatura não pode mais ser o pão do privilégio. E, se as editoras e as livrarias não sabem ou não escutam, as prateleiras gritam por palavras que nascem das ruas, da pele negra, feminina, universal, da palavra de todo o mundo. Outra coisa: sagrado não é quem escreve, é quem lê. E quem lê enxerga melhor. Um lugar onde se compra conhecimento não deveria vender preconceito.

Já há alguns anos, percorro escolas públicas com o projeto Poesia contra Violência, de incentivo à leitura e à criação poética, sempre em parceria com educadores que se dedicam a mostrar quão maravilhoso é o mundo das palavras. 

E eles, os jovens, com seus olhos virgens de livros que nunca chegam, abraçam cada rima, cada estrofe, como se fosse o primeiro beijo. Como os dias que não doem.

Outro dia —se me permitem alongar um pouco mais, é que a chance de falar é tão pouca que tenho de aproveitar—, estava em uma sala de aula trocando uma ideia com uma turma, num desses encontros, e lá do fundo um menino me saiu com essa:
— Poeta, me dá um bom motivo pra ler.
— Quem lê xaveca melhor.
— Vou começar a ler amanhã.

E foi aquela bagunça geral. E a menina rapidamente perguntou:
— E nós, as meninas?
— As meninas que leem não aceitam qualquer xaveco.

E rimos com tanta força que parecia que o riso estava represado. Lembrei uma passagem do “Livro dos Abraços”, do Eduardo Galeano: “...Pai, me ajuda a olhar”.

Bom, aí já estávamos rindo como se fôssemos Alice no País das Maravilhas. Então, fiquei pensando: “Como assim o povo não gosta de ler?”.

Quando digo povo, é a periferia, a classe média, os ricos. 

É preciso dar valor ao leitor como se dá ao eleitor. Eu, que mal sei ler e escrever, também choro quando uma livraria morre. E também sonho quando uma biblioteca nasce.

Falando em sonhos, neste ano, no Sarau da Cooperifa, aconteceram mais de 30 lançamentos de livros. Em sua maioria independentes. Teve autor que vendeu mais de cem livros numa única noite. Sem contar que também lançamos nossas obras em muitos outros saraus espalhados na cidade.

Na ausência de livrarias e de bibliotecas públicas na periferia, o livro anda circulando de mão em mão. Mas, para que isso acontecesse, foi preciso que a literatura descesse do pedestal e beijasse os pés da comunidade.

E agora, com a editora de PC, mais e mais livros vão chegar aos olhos das pessoas que nunca leram um livro sequer na vida. Essa cena, o primeiro livro nas mãos, ninguém jamais esquece. A palavra liberta!

Não sei solução para crise nenhuma. Falo do quarto de despejo das letras, só quis falar de iniciativas simples que se espalham pelo país e que incentivam a leitura e a criação literária. E de coisas que aprendo nas ruas com as pessoas que ainda não sabem, mas gostam de ler.

Quem sabe se a gente se juntar para tecer a manhã, que o João Cabral poetizou, a rosa do povo floresce finalmente no jardim plantado por Drummond? 


Sérgio Vaz é poeta, agitador cultural e fundador do Sarau da Cooperifa.

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