Descrição de chapéu Memorabilia

Melhor filme que já vi foi feito por um escritor, diz Neville D'Almeida

Diretor de 'A Dama do Lotação' fala sobre sua obra favorita, criada por Jean Genet

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Neville D'Almeida

Minha paixão pelo cinema vem da admiração e da revolta —pela vida exibida ali ser tão longe da verdade, tão idealizada, tranquilizante, cheia de happy endings que não existem.

Os filmes que eu via enquanto crescia raramente mostravam o que as pessoas fazem todos os dias. O moralismo católico e cristão, o moralismo da direita e da esquerda dominam os filmes. O cinema é o império da hipocrisia.

Eu sentia uma falta enorme da liberdade. E olha que gostava daqueles romances com Rock Hudson e Doris Day, dos musicais cujos protagonistas eram o homem e a mulher mais bonitos da cidade, que se apaixonavam em cenas que se desenrolavam por 40 minutos.

Na plateia havia 500 pessoas querendo ver o que acontecia depois do beijo. Adolescentes com a natural vontade de conhecer o sexo. E o que ocorria na hora H? O cara estendia a mão para fora da cama e apagava a luz. Fade out —fodeu tudo.

O mundo está acostumado demais com artistas domesticados, aqueles que dá para colocar na prateleira do mercadinho. Eu já falava para meu pai, com uns 16 anos, que ia fazer cinema, mas não ia fazer assim.

Para mim, a maior ferramenta do artista é a liberdade. Foi com ela que Michelangelo fez a Capela Sistina, que Leonardo da Vinci criou tantas imagens de homens pelados. Afinal, eles perceberam que o homem nu e a mulher nua são as obras-primas da criação de Deus. Meu Deus não é o do cabresto e da mordaça, é o da liberdade.

O incrível é que o filme de que gosto mais, em que vejo o maior grau de liberdade, foi feito por alguém que nunca foi cineasta. Um homem que nunca fez um longa-metragem, cuja única obra é esse curta de 25 minutos chamado “Un Chant d’Amour” (1950): Jean Genet.

Já tinha visto algo do que vi neste filme na obra de Humberto Mauro —muita simplicidade e sensualidade, enquadramentos geniais, ainda que não sexualidade; em “Limite”, de Mário Peixoto —também muito sensual; em “Monika e o Desejo”, de Ingmar Bergman —de forte intensidade sexual, mesmo sem mostrar nada.

Mas em Jean Genet é superlativo. Ele usa no cinema uma liberdade sem precedentes, com talento, criatividade e respeito —aquilo que as pessoas acham que é indecente, imoral, é na verdade respeito ao que é do ser humano.

Devo ter visto “Un Chant d’Amour” no início dos anos 1970, logo depois de fazer meu primeiro filme, “Jardim de Guerra”, que foi exibido em Cannes, mas censurado no Brasil. O dia em que recebi essa notícia da proibição, da boca de Glauber Rocha num hotel na França, mudou tudo para mim. Ele me disse que, se eu voltasse ao Brasil, ia ser preso —e eu não tinha matado ninguém, roubado ninguém, só havia feito um filme.

Depois de passar por tudo isso, ao ver o que Genet mostrava no seu curta, eu disse: “É tudo o que eu penso de liberdade”. Ele é tão livre no cinema como é na literatura. Ali tinha toda a liberdade de bater punheta, de jogar flores para outro homem, de deitar numa cama excitado.

Eu nunca tinha visto nada parecido, mesmo tendo assistido a milhares de filmes —quando me mudei para os Estados Unidos para ser garçom, vivendo vida de gente e não de intelectualzinho babaca, chegava a ver cinco filmes por dia.

O filme é amor, sexo, ternura, pura poesia. A cena de que mais me lembrava era a de uma flor dependurada da janela da cadeia, que um prisioneiro amarrava em um barbante e jogava para o outro. É um momento de enorme lirismo.

Uma coisa é a liberdade de poder retratar o sexo como quiser, outra coisa é aquilo que você faz de mais profundo, de mais emocional. Essa cena foi o que ficou de inesquecível para mim, mesmo em meio a tantas cenas marcantes. Eu faço um trabalho mais realista, mas sou muito romântico. Busco a sensibilidade o tempo todo.

Na verdade, só revendo “Un Chant d’Amour” há alguns dias é que reparei que é um filme gay. A obra era tão livre que nem pensei nesses termos —eu nunca tive vontade de ser gay, mas não é preciso disso para saber que somos todos iguais. Desde jovem eu sempre tive vontade de bater em quem debochava na rua de homens que andavam de braços dados: é preciso ser muito livre e corajoso para fazer isso mesmo com o risco de ser apedrejado.

O papel do artista é exercer a liberdade dentro do seu ofício. Mas artistas são prisioneiros da miséria sexual, então não tocam nisso. Todos estão nessa situação: bancários, industriais, executivos, estadistas. A busca de se aceitar, de ser a si mesmo, é de todo ser humano. Fernando Pessoa tem uma frase genial: “Procuro [...] desembrulhar-me e ser eu”.

E olha, sexo não é a melhor coisa do mundo. A melhor é fazer na vida aquilo que você gosta. Em seguida vêm a família, os amigos, a liberdade. Sem essa felicidade, sentindo que a vida está passando à toa pelos seus dedos, você nem faz bom sexo. 


Neville D’Almeida, cineasta, dirigiu “A Dama do Lotação” (1978), “Os Sete Gatinhos” (1980) e “Rio Babilônia” (1982).

Depoimento a Walter Porto.

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