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Meu pai nunca admitiu que foi me ver no teatro, diz Aracy Balabanian

Atriz fala da primeira vez em que viu comédia em São Paulo, aos 12, e decidiu seguir carreira

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Aracy Balabanian

Meu pai era um imigrante armênio semianalfabeto que fugiu da guerra aos 14 anos e aprendeu tudo de forma autodidata. Em Campo Grande (MS), onde nasci, ele obrigava os filhos todos a lerem jornal. E eu, querendo imitar tudo que meus seis irmãos mais velhos faziam, pegava alguns cadernos para ler também.

Eu sempre lia a seção de arte, talvez por ser mais fácil, em especial a coluna do Sábato Magaldi sobre teatro, no Estado de S. Paulo. E, naquele tempo, tudo o que eu conhecia da arte de representar era o circo. Ia aos espetáculos e ficava esperando a parte final, que chamava de “draminha”, uma encenação breve.

Quando eu tinha cerca de dez anos, minha família se mudou para São Paulo, e eu insistia muito com as minhas quatro irmãs para ir ao teatro pela primeira vez. Não importava a peça. Elas finalmente aceitaram me levar —e só uma delas entrou comigo, porque era caro— para ver a comédia “Mirandolina”, do italiano Carlo Goldoni, no Teatro Maria Della Costa. 

Lembro a cena de eu entrando no teatro pela primeira vez. Eu estava já com 12 anos —ou seja, passei mais de ano pedindo para ir a uma peça— e, ao subir as escadas, me deparei com aquele espaço deslumbrante. 

Já tinha ido ao cinema nesse tempo de São Paulo, mas entrar naquele Cine Metro da avenida São João era um arranca-rabo. Fui quase linchada uma vez na sessão das 16h, com um mar de gente me prensando para entrar na hora em que o filme começou. O teatro era uma coisa mais chique.

Fiquei fascinada com “Mirandolina”. A montagem era belíssima, parte de uma renovação do teatro brasileiro por encenadores italianos, com ecos de commedia dell’arte. Pude entender melhor o porquê de eu gostar tanto do circo, que na minha cidade era tão precário, mas que guardava relação com esse tipo de espetáculo. Fato é que, ao sair de Goldoni, tive aquela sensação de “é aqui que eu vou ficar”.

A partir dessa descoberta, comecei a ver mais peças. Costumava fazer cadernos inteiros com recortes de críticas de jornal —me apaixonei por uma atriz chamada Nathalia Timberg e colava tudo o que ela fazia—, e, angustiada porque só se podia entrar em escolas de teatro com 18 anos, puxava meus professores de latim e português para falar de dramaturgia.

Até que, alguns anos depois, Augusto Boal foi fazer uma conferência no meu colégio. Já tinha visto umas cinco vezes a peça “Ratos e Homens”, de John Steinbeck, que estava em cartaz e era a primeira direção de Boal no Teatro de Arena.

Ele notou que eu estava muito interessada e me sugeriu fazer um teste no Arena, para o Teatro do Estudante. Nessa época, meados dos anos 1950, estavam se profissionalizando ali nomes como Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Vera Gertel, e não queriam deixar morrer o teatro amador feito lá.

Não tive a menor dúvida e fui. E quem era a belíssima mulher que conduzia os testes? Beatriz Segall. Eu estava alucinada, em meio a pessoas que acompanhava de perto no teatro, como mesmo Guarnieri e Vianinha.

Passei no teste e comecei a ensaiar na casa da Beatriz. Foi ali que começou minha vida. Minha primeira peça com direção dela, protagonizando um texto de Artur de Azevedo, como reunia todos esses nomes importantes do teatro amador, já atraiu toda a intelectualidade.

Alguns domingos depois, Décio de Almeida Prado escreveu uma crítica sobre a peça que dizia: “Ontem nasceu uma estrela”. Parece até conto da carochinha. Houve uma reunião do Arena para ratificar as impressões do meu deus, Décio, e nesse dia vi lágrimas nos olhos da Beatriz, que me encheram de emoção, vaidade e certo medo.

Porque eu sabia o que ia enfrentar com meu pai —não que ele fosse bobo ou preconceituoso, mas por sua origem: na comunidade armênia, todo mundo se metia muito na vida uns dos outros.

Intensifiquei meus estudos, tanto por orientação da grande intelectual que era Beatriz quanto para poder justificar a meu pai a entrada na Escola de Arte Dramática —que fiz em paralelo a ciências sociais na USP. Como comecei muito cedo e tive uma luz me guiando pelos caminhos e pelas pessoas certas, já na faculdade os colegas me conheciam.

Mesmo assim, o sofrimento na relação com meu pai foi grande. Quando fui para a televisão, ele fingia que não via. Eu quis que ele fosse ver “Os Ossos do Barão”, de Jorge Andrade, um dos meus primeiros espetáculos, porque era a história de um imigrante. Até acho que ele foi, mas morreu sem me dizer.

Minha estreia na TV foi com “Antígona”, de Sófocles, uma peça transmitida como um especial de final de ano. Ela foi tão bem que nos convidaram a fazê-la no Municipal. Essa foi a primeira vez que sei que meu pai me viu no palco.

Ele foi levando minha mãe, que estava doente, e nunca confessou isso para mim. Foi ela quem me disse: que enquanto eu era aplaudida em cena aberta, ele se virava para ela e dizia “olha, é sua filha”.

Durante uma das nossas maiores brigas, ele chegou a me ameaçar dizendo que eu nunca seria uma atriz do nível de um Sérgio Cardoso. Até que ele me viu fazendo novela com o próprio Sérgio Cardoso. Aí ele entregou os pontos.

Meu pai faleceu durante essa mesma novela, “Antônio Maria”. E, nos seus bolsos, havia fotografias minhas autografadas, que depois soube que ele distribuía feito cabo eleitoral. 


Aracy Balabanian, atriz, integra o elenco do filme ‘Sai de Baixo’, que estreia na quinta (21).

Depoimento a Walter Porto.

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