Descrição de chapéu Perspectivas

Programa pioneiro em Roterdã destaca o cinema negro brasileiro

Parte dos diretores de filmes exibidos no festival bancou ida à Holanda com vaquinhas

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Ela Bittencourt

A 48ª edição do Festival Internacional de Cinema de Roterdã apresentou um programa especial dedicado ao cinema brasileiro negro e recebeu, entre o final de janeiro e o início de fevereiro, pelo menos 20 diretores do Brasil.

Concebido pela curadora convidada Janaína Oliveira, o programa Alma no Olho buscou dar destaque tanto a filmes com estratégias experimentais e disruptivas quanto àqueles inspirados no fluxo das experiências cotidianas dos brasileiros negros.

Parte dos diretores de curtas-metragens bancou sua ida a Roterdã pelo aplicativo de “vaquinhas” Kickstarter ou recolhendo fundos entre amigos e colaboradores. Alguns saíam do país pela primeira vez.

“O corpo negro é sempre representado como o outro, mas nós também somos feitos de poesia”, disse a cineasta Jéssica Queiroz, de “Peripatético” (2017). Everlane Moraes, de “Pattaki” (2019), acrescentou em uma masterclass: “O mais importante é criar uma nova antropologia visual, recapturar nossa subjetividade e o domínio sobre o poder simbólico.”

O tema da subjetividade esteve presente em curtas como “Afronte” (2018), de Bruno Victor e Marcus Azevedo, “BR3” (2018), de Bruno Ribeiro, e “Assim” (2013), de Keila Serruya, que dão voz à comunidade LGBTQ e reafirmam o poder do cinema para criar possibilidades e cenários onde esses corpos podem agir.

Poder não só da fala, mas de ditar e contextualizar o discurso, foi o que guiou o programa, com filmes do pioneiro do cinema negro brasileiro Zózimo Bulbul e um novo longa do cineasta veterano Joel Zito Araújo, “Meu Amigo Fela” (2019).

“Zózimo não foi o primeiro cineasta negro brasileiro”, enfatizou Araújo em palestra, “mas foi certamente o primeiro a contestar o mito da democracia racial brasileira”.

Filme do gênero “found footage” feito por Bulbul, “Abolição” (1988) é uma correção feroz desse mito, enquanto seu curta “Alma no Olho” (1973) celebra o poder do corpo negro. O curta “Aniceto do Império em Dia de Alforria” (1981), também no programa, busca séculos do ativismo para contrariar a ideia de que a abolição e os direitos foram concedidos aos negros pacificamente.

O legado de ativismo permeia outros filmes de diretores jovens, como “Quantos Eram pra Tá?” (2018), de Vinícius Silva, que mostra experiências de universitários negros paulistas de diversas origens socioeconômicas, ou o curta “Experimentando o Vermelho em Dilúvio” (2016), no qual a artista Michelle Mattiuzzi documenta sua própria performance de rua —poderoso exorcismo simbólico da violência colonial.

Já filmes como “Kbela” (2015), de Yasmin Thayná, “Elekô” (2015), do Coletivo de Mulheres de Pedra, e “Merê” (2017), de Urânia Munzanzu, celebram o papel social das mulheres negras e chamam a atenção para os preconceitos estéticos contra elas. Os filmes também destacam a criação de vínculos culturais, dentro dos quilombos e através do imaginário pan-africano.

Curador e crítico brasileiro presente no festival, Heitor Augusto, 35, nota uma mudança geracional importante: “Antigamente, quando eu e um diretor negro da minha geração, como Gabriel Martins, olhávamos à nossa volta, quase sempre éramos os únicos. Hoje começamos a fazer parte de espaços onde não somos mais os únicos. Isso, do ponto de vista da subjetividade e da psique, é incomensurável.”

Gabriel Martins dirigiu, junto com Maurílio Martins, o longa “No Coração do Mundo” (2018), que teve estreia mundial no festival, na competição Tiger Awards. De estilo que os próprios diretores chamam de “cinema maximalista”, a ação se passa na comunidade de Laguna, entre Contagem e Belo Horizonte, onde, entre pessoas que sonham com uma vida melhor, algumas concebem um roubo audacioso. Mas o filme é mais que uma história de crime.

Mistura de comédia, drama e faroeste, “No Coração do Mundo” brinca com registros cinematográficos, subvertendo expectativas. Tem personagens memoráveis, como uma pequena empreendedora ansiosa (Grace Passô), uma motorista de ônibus sonhadora (Kelly Crifer) e um bandido fracassado (Leo Pyrata). 

Épico, mas com a atenção detalhista ao bairro e a seus moradores —os rostos, os pequenos gestos e atos— o filme é, nas palavras do diretor do festival, Bero Beyer, um exemplo de obra que mostra a vanguarda das novas abordagens para o cinema.

Também de Gabriel Martins, o curta “Nada” (2017) mostra uma jovem que se revolta contra as demandas de pais e professores e luta pelo direito de descobrir seus desejos.

Já André Novais Oliveira leva elementos de ficção científica e humor ao cotidiano —tendência que surge no curta “Quintal” (2015) e culmina no longa “Temporada” (2018).

Apesar de a indústria cinematográfica brasileira ter aberto alguns espaços, respondendo a demandas de espectadores e cineastas, Oliveira aponta a escassez de centros que facilitem as pesquisas sobre o cinema negro e destaca a necessidade da inclusão de curadores negros em festivais nacionais, além da ampliação do currículo da história do cinema —ainda eurocêntrico— nas faculdades, para que as conquistas do cinema negro brasileiro possam ser consolidadas. 


Ela Bittencourt é crítica e programadora de cinema.

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