A internet cria terroristas e será nossa morte, afirma escritor

Rede abriga espaços de estímulo ao rancor e dá ao preconceito ar de idealismo

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Frank Bruni

Nora Ephron certa vez escreveu um ensaio brilhante sobre a trajetória de seu apego, e o de muitas outras pessoas, ao email, da emoção de descobrir uma maneira nova e rápida de manter contato com os amigos ao inferno de não ser capaz de desligá-lo.

Sinto mais ou menos a mesma coisa a respeito da internet inteira.

Ela era um sonho de expansão do conhecimento e de conexões ampliadas, no começo. E se tornou um pesadelo de vieses manipulados e de ódio metastático.

Antes de supostamente começar a enviar bombas caseiras pelo correio a Barack Obama, Hillary Clinton e outras pessoas, Cesar Sayoc encontrou quem o encorajasse online —talvez não em forma de instruções sobre como preparar explosivos, mas no sentido de que ele podia berrar seu ressentimento em um teatro que fazia o oposto de repudiá-los. Eles eram ecoados. Eram validados e cultivados. Alguma coisa já em si sombria era tornada ainda mais sombria.

"Quando foi detido na Flórida", o New York Times noticiou, "Sayoc parecia se enquadrar ao perfil já bem conhecido do extremista moderno, radicalizado online e sugado a um vórtice de furor partidário".

Robert Bowers, acusado pelo homicídio de 11 judeus americanos em Pittsburgh em um ataque realizado no final de outubro de 2018, pouco depois da detenção de Sayoc, alimentava sua insanidade e nutria suas fantasias sanguinolentas no mesmo vórtice online. Enquanto Sayoc criava nichos de feiura no Facebook e no Twitter, Bower encontrava porto ainda mais seguro para suas paixões racistas, xenófobas e antissemitas na rede social Gab, criada em 2016 para servir de berçário a nacionalistas brancos. Lá eles se congregavam, lá eles se lamuriavam, lá eles estimulavam o rancor uns dos outros, com uma eficiência e uma falta de filtros que simplesmente não existe offline.

Foi na internet, com sua privacidade e seu anonimato, que Dylann Roof pesquisou sobre a supremacia branca e formulou sua malévola convicção de que a violência era uma necessidade. Em seguida, ele foi a uma igreja negra histórica em Charleston, na Carolina do Sul, e matou a tiros nove paroquianos negros, em junho de 2015.

 

Foi na internet —mais precisamente, no Facebook— que Alek Minassian postou uma promessa de adesão à "rebelião dos incel", uma referência aos ressentimentos dos homens "involuntariamente celibatários" que não conseguem atrair o interesse sexual das mulheres que os cercam. Em abril de 2018, ele usou um furgão para atropelar e matar dez pessoas em Toronto.

Enclaves existentes na internet distorceram as visões de mundo de todos esses homens, convencendo-os da primazia e da pureza de seu rancor. A maioria de nós jamais havia ouvido o termo "incel" antes do massacre em Toronto. Mas o termo era a peça central inegável da vida de Minassian.

A maioria de nós desconhecia o trabalho do HIAS, uma organização judaica que ajuda no assentamento de imigrantes. Mas essa sigla dominava as teorias de conspiração antissemitas de Bowers. E isso reflete o poder da internet para exibir queixas espúrias como se fossem obsessões legítimas, além de dar ao preconceito uma pátina de idealismo.

A tecnologia sempre foi uma moeda com duas faces: potencial e perigo. Foi isso que Mary Shelley explorou em "Frankenstein", que celebrou seu 200º aniversário no ano passado; e isso vem sendo um dos temas dominantes da ficção científica desde então.

A internet é o paradoxo da tecnologia escrito de maneira cada vez mais monstruosa. É uma ferramenta sem paralelos para o aprendizado, para a diversão e para a criação construtiva de comunidades. Mas tampouco tem rivais na difusão de mentiras, no estreitamento de interesses e na erosão de causas comuns. Trata-se de um bufê glorioso, mas que encaminha seus fregueses apenas à carne vermelha ou apenas à couve. Isso faz com que sejamos ao mesmo tempo ridiculamente superalimentados e destrutivamente subnutridos.

A internet cria terroristas. Mas muito antes disso, ela semeia inimizades ao emaranhar informação e desinformação a ponto de tornar impossível a distinção entre o real e o russo.

 

Não sou só eu que o digo. Veja o que tem a dizer um dos gigantes do Vale do Silício, cujas mercadorias dependem de nosso vício em internet. Falando em uma conferência em Bruxelas, Tim Cook, o presidente-executivo da Apple, alertou que "plataformas e algoritmos que prometem melhorar nossas vidas podem na verdade maximizar nossas piores tendências humanas".

"Agentes renegados e até governos tiraram vantagem da confiança dos usuários para aprofundar divisões, incitar à violência e até mesmo solapar nosso senso compartilhado do que é verdade e do que é falso", ele acrescentou.

Isso aconteceu antes da prisão de Sayoc, antes do morticínio de Bowers, antes que Jair Bolsonaro, populista de extrema direita, vencesse a eleição presidencial brasileira. As forças pró-Bolsonaro tentaram prejudicar seus oponentes e ajudar sua candidatura ao inundar o WhatsApp, app de mensagens controlado pelo Facebook, com um dilúvio de informações incorretas sobre locais e horários de votação.

 

O New York Times apontava que uma busca pela palavra "judeus" no site de fotografia Instagram trazia entre seus resultados 11.696 posts com o hashtag "#jewsdid911", insanamente culpando os judeus pelos ataques que derrubaram o World Trade Center, e imagens e vídeos igualmente grotescos que os demonizavam. O antissemitismo pode ser antigo, mas seu sistema de disseminação é completamente moderno.

E absolutamente aterrorizante. Não sei exatamente como poderemos enquadrar a liberdade de expressão —que é primordial— com um policiamento melhor da internet, mas estou certo de que devemos abordar esse desafio com mais urgência do que vem sendo o caso até agora. A democracia está em jogo. E vidas também.


Frank Bruni trabalha no New York Times desde 1995 e ocupou diversas posições —correspondente na Casa Branca, chefe da sucursal de Roma e crítico chefe de gastronomia— antes de se tornar colunista, em 2011. Ele escreveu três best sellers.

Texto publicado originalmente no New York Times, em outubro de 2018; tradução de Paulo Migliacci.

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