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Após 70 anos, Simone de Beauvoir ainda mostra caminho da liberdade feminina

Para antropóloga, 'O Segundo Sexo' (1949) continua a ser a obra fundamental do feminismo

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Mirian Goldenberg

[RESUMO] Clássico estudo de Simone de Beauvoir sobre a condição feminina chega aos 70 anos e ainda é responsável por mostrar os caminhos para a liberdade das mulheres.

 

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.” A célebre frase que abre o segundo volume de “O Segundo Sexo” sintetiza as teses apresentadas por Simone de Beauvoir nas mais de 900 páginas de um estudo fascinante sobre a condição feminina.

Considerada a bíblia do feminismo, a obra persegue obstinadamente as respostas para a mesma questão existencial: o que é uma mulher? O primeiro volume, “Fatos e Mitos”, examina profundamente a condição feminina nas dimensões biológica, psicológica e histórica. O segundo, “A Experiência Vivida”, analisa as diferentes fases da vida de uma mulher, desde a infância até a velhice, discutindo questões como iniciação sexual, casamento e maternidade.

Por fim, a parte que teve maior impacto na minha vida: “O Caminho da Libertação”. Nela, Simone de Beauvoir mostra que a “mulher independente” —aquela mulher excepcional que luta por sua autonomia econômica, social, psicológica e intelectual— “está apenas nascendo”. Argumenta que se as dificuldades são mais evidentes para uma “mulher livre” é porque ela escolheu a luta, não a resignação.

Beauvoir defende que pelo trabalho a mulher cobriu em grande parte a distância que a separava do homem —e só com o trabalho pode conquistar uma liberdade concreta. “Produtora, ativa, ela reconquista sua transcendência; em seus projetos afirma-se concretamente como sujeito; pela sua relação com o fim a que visa, com o dinheiro e os direitos de que se apropria, põe à prova sua responsabilidade.”

Ela enfatiza que muitas mulheres, mesmo as que exercem os ofícios mais modestos, têm consciência da importância de serem independentes economicamente para conseguirem ser mais livres e plenas.

“Ouvi uma mulher que lavava o piso de um saguão de hotel declarar: ‘Nunca pedi nada a ninguém. Venci sozinha’. Mostrava-se tão orgulhosa quanto um Rockefeller, por se bastar a si mesma.”

Beauvoir admite que as diferenças biológicas desempenham algum papel na construção da inferioridade feminina, mas defende que a importância social dada a essas diferenças é muito mais determinante para a opressão. Ser mulher não é somente nascer com determinado sexo, mas, principalmente, ser classificada de uma forma negativa pela sociedade. É ser educada, desde o nascimento, a ser frágil, passiva, dependente, apagada, delicada, discreta, submissa e invisível.

Portanto, ser mulher não é um dado da natureza, mas da cultura, já que não há um destino biológico que defina a mulher como um ser inferior ao homem. A história da civilização fabricou o quadro de submissão e subordinação social. Depois, para cada mulher em particular, é a história da sua vida, em especial a da sua infância, que a define como “o inessencial perante o essencial”. O homem é o Sujeito, ela é o Outro: o segundo sexo.

Publicado na França em 1949, o magnífico estudo teórico foi empreendido por uma mulher que só bem mais tarde, na década de 1970, se tornaria uma militante feminista. Ela reconhece que nunca experimentou a condição de inferioridade da mulher que descreve. E somente quando começou a pesquisar e escrever “O Segundo Sexo” constatou que havia “uma infelicidade propriamente feminina”.

Simone de Beauvoir em conferência sobre "A condição da mulher no mundo moderno", no auditório da FAAP, em São Paulo, em 7 de setembro de 1960 - Folhapress

Simone de Beauvoir viveu sua própria condição de intelectual sem nunca ter sido hostilizada pelos homens, sem ter sofrido o que a maioria das mulheres sofre apenas por ter nascido com um determinado sexo. Como nunca quis casar nem ter filhos, não teve um tipo de vida doméstica que considerava opressiva. Acreditava que, assim, havia conseguido escapar das servidões da condição feminina. Rompeu com o destino secundário tradicionalmente reservado às mulheres e se tornou uma das maiores protagonistas das lutas feministas.

Quando minhas jovens alunas me perguntam, “que livro eu devo ler para começar a estudar a questão feminina?”, quando mulheres me pedem, “você pode indicar um livro que me ajude a entender melhor os meus desejos e sofrimentos?”, ou quando certos homens me indagam, “qual é o livro mais importante para compreender a condição feminina?”, respondo, sem hesitar, “O Segundo Sexo”.

Como para muitas mulheres da minha geração, “O Segundo Sexo” determinou toda a minha trajetória de vida. Minha primeira leitura do livro, aos 16 anos, influenciou decisivamente minhas escolhas pessoais e profissionais.

Desde então, li e reli todos os livros de Simone de Beauvoir. Se eu estava condenada a ser “uma moça bem-comportada”, a obra da filósofa francesa me transformou em uma antropóloga malcomportada. Ela foi a minha maior inspiração para estudar as mulheres brasileiras e, também, para pesquisar e escrever de um jeito menos convencional dentro do mundo acadêmico.

Se alguém me pergunta se “O Segundo Sexo” ainda é leitura obrigatória, respondo com os dados de uma pesquisa recente que fiz com 5.000 homens e mulheres, com idades de 17 a 96 anos. Perguntei: O que você mais inveja em um homem?

As mulheres, de todas as idades, responderam em primeiríssimo lugar: liberdade. Elas invejam a liberdade sexual, a liberdade com o corpo, a liberdade de ir e vir, a liberdade de rir e de brincar, a liberdade de fazer xixi em pé e muitas outras liberdades masculinas. Já os homens, quando perguntados sobre o que invejam em uma mulher, responderam categoricamente: nada.

Impressiona que, 70 anos depois da publicação de “O Segundo Sexo” e após tantos avanços e lutas na condição feminina, as mulheres continuem invejando fortemente a liberdade masculina. Enquanto os homens demonstram que não enxergam nada de invejável nas mulheres.

“Não há, para a mulher, outra saída senão a de trabalhar pela sua libertação”, adverte Simone de Beauvoir. Para tanto, cumpre-lhe “recusar os limites de sua situação e procurar abrir para si os caminhos do futuro; a resignação não passa de uma demissão e de uma fuga”.

Para ela, “hoje em dia, lhe é possível tomar o destino nas mãos, em vez de entregá-lo ao homem”. Porém, “é muito difícil às mulheres assumirem concomitantemente sua condição de indivíduo autônomo e seu destino feminino... É mais confortável suportar uma escravidão cega que trabalhar para se libertar”.

No entanto, como sua obra demonstra, a luta pela libertação é uma exigência não só das mulheres mas também dos homens, já que senhores e escravos são aprisionados pela mesma lógica de dominação masculina. Enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como iguais, não poderão viver plenamente a sua liberdade.

A maior lição de “O Segundo Sexo” para as novas gerações é que querer ser livre é querer também que os outros sejam livres. Afinal, homens e mulheres não nascem livres: tornam-se livres.


Mirian Goldenberg, antropóloga e colunista da Folha, é professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de “A Bela Velhice”.

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