As três rotas que trouxeram a centenária Bauhaus ao Brasil

Especialistas avaliam como a escola alemã influenciou a produção nacional

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[RESUMO] Arquitetos e designers retraçam as principais rotas que permitiram a entrada no país da escola alemã, fundada há cem anos, e avaliam como a herança se integrou à produção nacional.

Uma viagem de estudos para os Estados Unidos, entre setembro de 1946 e novembro de 1947, levou o então professor-assistente da Escola Politécnica da USP João Batista Vilanova Artigas ao Instituto de Design, em Chicago, onde teve contato com László Moholy-Nagy. 

Ensaísta, pintor, escultor, designer e fotógrafo, o húngaro Moholy-Nagy, ou MN, foi professor da Bauhaus em Weimar e Dessau, na Alemanha. Saiu da escola em 1928. Deixou a Alemanha por causa da ascensão do nazismo. Em 1937, emigrou da Europa para os Estados Unidos, onde se tornou o diretor da New Bauhaus, projeto da Associação de Artes e Indústrias americana, por indicação de Walter Gropius.

Depois do fracasso da New Bauhaus, Moholy-Nagy fundou o Instituto de Design, em Chicago. Foi editor das publicações da Bauhaus em suas várias fases e um dos responsáveis por sistematizar em textos os seus programas de ensino das diversas modalidades. 

O encontro de Artigas e MN foi fundamental para a conexão entre as ideias da Bauhaus —escola de vanguarda fundada em 1919 que reinventou o design e a arquitetura no século 20— e os princípios que orientaram a formação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “Vision in Motion” e “The New Vision” foram duas das publicações de MN muito importantes para difundir suas ideias e construir essa vertente da herança bauhausiana no Brasil.

Em 1969, quando ficou pronto o prédio da FAU na Cidade Universitária, projetado em 1961, traços da pedagogia da Bauhaus, o funcionalismo e a função social da arquitetura ganharam um espaço físico de difusão e um ícone brasileiro.

“Artigas ganhou uma bolsa da Fundação Guggenheim para conhecer a arquitetura norte-americana. Como professor da Escola Politécnica, altamente interessado no ensino, percorreu várias escolas. Uma em que ele se deteve foi o Instituto de Illinois, onde conheceu essa figura filosófica e ideologicamente muito refinada, emblemática da Bauhaus, que era László Moholy-Nagy. Então, em 1948 e 1949, quando começou a FAU, Artigas trouxe essa informação para a escola”, afirma o arquiteto e professor da FAU Julio Katinsky.

O pensamento se casava com a visão politécnica da construção na valorização da tecnologia moderna. “Mas László Moholy-Nagy era um homem de vasta cultura e tinha influência dos construtivistas russos, que eram socialistas”, explica Katinsky.

O núcleo do ideário arquitetônico brasileiro que se formava naqueles anos unia a ideia de funcionalidade da Bauhaus e objetivos do Ciam (Congressos Internacionais da Arquitetura Moderna, realizados dez vezes entre 1928 e 1956, cujo documento mais importante é a Carta de Atenas, de 1933, sobre a cidade funcional).

“Os Ciam estabeleciam uma relação estreita entre sociedade, a tecnologia moderna e as últimas expressões das artes plásticas. A arquitetura moderna e o urbanismo moderno eram ligados a uma visão socialista, porque se pretendia fazer a cidade como casa de todos os homens, e não a casa de uma classe apenas”, diz Katinsky.

A influência da Bauhaus trazida por Artigas se materializou na escola, segundo Katinsky, na caracterização do projeto de arquitetura. “O projeto tinha que obedecer a uma função. E esta era a função social.”

“A Bauhaus foi muito forte no sentido da funcionalidade. Mas nós absorvemos isso através do Ciam, com a flexibilidade de Le Corbusier e do Oscar Niemeyer”, afirma. “Por exemplo, quando era para receber o Sol. Todos os edifícios do Walter Gropius —quando ele fez con juntos habitacionais— tinham uma única face. Le Corbusier, não. Trabalhava com todas as faces procurando adaptar. Tanto que ele adaptou —num certo sentido, inventou— os brise-soleil, que controlavam a luz de acordo com a situação do bloco em relação ao Sol. Isso era inconcebível para o mundo da Bauhaus. Ela é mais rígida que Le Corbusier. Le Corbusier era muito mais flexível.”

O designer e arquiteto Chico Homem de Melo vê, no currículo da FAU implantado a partir de 1962, marcas da Bauhaus. “A escola entendia o arquiteto como o projetista da contemporaneidade. A grade trazia três grandes áreas, projeto, história e tecnologia, sendo que projeto ficava com 50% do tempo, dividido em edificação, planejamento urbano, desenho industrial e programação visual. A ideia era mesmo criar do garfo à cidade”, conta o ex-aluno e professor da escola.

“O edifício da FAU foi feito para esse tipo de ensino. Estava em contato com todas as tecnologias. Os espaços para as oficinas tinham grandes laboratórios, o de maquetes e a gráfica. A escola formou muitos designers e urbanistas.”

Na visão de Homem de Melo, a mais forte influência da Bauhaus no design chega ao Brasil através do Masp e do seu Instituto de Arte Contemporânea, IAC, fundado também por Pietro Maria Bardi, e que durou de 1951 a 1953.

Os Bardi têm papel fundamental. Na condução do Masp também havia uma visão bauhausiana. Um museu de arte que já nasce com design, incluindo a propaganda, o ensino das vitrines”, afirma.

 
O arquiteto Vilanova Artigas no prédio da FAU-USP, que ele projetou - Luiz Saez/Folhapress

“Vejo também herança bauhausiana nas oficinas do Sesc Pompeia. Elas são a Bauhaus de Lina: tapeçaria, cerâmica, tipografia. Não sei se existe em algum outro lugar essa marca com a força que tem no Sesc Pompeia”, diz Homem de Melo.

“A primeira geração de alunos do IAC é referência: Alexandre Wollner, Ludovico Martino, Emilie Chamie e Mauricio Nogueira Lima. Wollner funda depois a Escola Superior de Desenho Industrial, Esdi, no Rio; Martino faz um escritório que era uma referência, quase um escritório-escola. Então, via Masp, essa herança formou uma turma que vai influenciar muita gente depois”, diz.

No livro “IAC – Primeira Escola de Design do Brasil”, a historiadora e crítica Ethel Leon analisa os documentos escritos por Bardi e pelo arquiteto e professor Jacob Ruchti sobre a fase de elaboração e divulgação do IAC e que filiam a escola brasileira à Bauhaus Dessau e ao Instituto de Design de Chicago.

“O IAC representa portanto em São Paulo —de uma maneira indireta— as principais ideias da Bauhaus, depois de seu contato com a organização industrial norte-americana”, escreveu Ruchti, em citação usada por Leon em seu livro. Leon também meciona a visita de Ruchti ao Instituto de Design de Chicago, em 1947.

Segundo a autora, a Bauhaus que interessava ao IAC era “aquela já decantada nos Estados Unidos e harmonizada com as necessidades do grande capital”.

“Para falar de Bauhaus no Brasil tem de falar de Ulm. Foi a referência que chegou ao Brasil, através da vinda do Max Bill”, diz Chico Homem de Melo. Bill (1908-1994) foi aluno da Bauhaus de Dessau e fundador da escola de Ulm. “A passagem dele pelo Brasil foi um turbilhão.” O artista ganhou um prêmio e teve uma sala especial da Bienal Internacional de São Paulo.

“E a Escola Superior de Desenho Industrial, Esdi, no Rio, foi uma Ulm dos trópicos. Até a planta da escola era igual”, diz Homem de Melo.

O curso da Esdi se diz oficialmente concebido a partir do modelo da HfG-Ulm (Hochschule für Gestaltung Ulm), escola alemã fundada nos anos 1950 e que buscou rever os ideais das primeiras Bauhaus no pós-guerra, já numa perspectiva da sociedade industrial.

A filósofa e professora Maria Cecilia Loschiavo dos Santos destaca a contribuição do designer e professor Karl Heinz Bergmiller como central para as conexões entre a escola de Ulm e a Esdi carioca. “Bergmiller veio ao Brasil como bolsista em 1958 e envolveu-se com a criação da Esdi e outras atividades relativas ao design organizadas pelo Museu de Arte Moderna do Rio”, conta Maria Cecília. “Estabeleceu a relação com a escola de Ulm principalmente na prática pedagógica de projeto de produto visando a produção industrial, seriada e em grande escala, impulsionada pelas políticas desenvolvimentistas dos anos 1950.”

“Como contraponto a esta abordagem ulmiana, dentro da própria Esdi havia outros posicionamentos pedagógicos e de prática de projeto, levando em conta a especificidade brasileira e ampliando o campo e a formação dos estudantes”, Argumenta Maria Cecília.

Segundo ela, em 1968 a escola experimentou uma “explosão crítica” e uma redefinição de currículo, com caráter mais humanístico e social.

Ela destaca a presença de Aloísio Magalhães na escola. Nascido em Recife, onde formou-se em direito, “era crítico atento aos processos de colonização e descolonização na educação e na prática do design”.

 

Magalhães alertava para a especificidade da educação em design no Brasil, devido aos contrastes e à desigualdade do processo de desenvolvimento, à escassez de recursos em relação à amplitude do espaço e à responsabilidade ética de diminuir o contraste entre pequenas áreas ricas e grandes áreas rarefeitas e pobres.

Segundo Cecília, o embate destas posições, divergências e convergências foi essencial para a formação de gerações de designers brasileiros.

“Passados cem anos da criação da Bauhaus é importante reavaliar as heranças bauhausianas em nosso país, antes que esta palavra tão utilizada no mundo das artes, arquitetura e do próprio design vire sinônimo de uma marca para vender todo tipo de produtos ou serviços”, diz Maria Cecilia.

Segundo ela, os princípios da Bauhaus muito beneficiaram o mercado brasileiro, a partir dos novos processos de industrialização, mas nem tudo seguiu nesta orientação. “Um dos mais representativos móveis projetados no Brasil, a Poltrona Mole, de Sergio Rodrigues, trilhou outros caminhos, muito mais próximos das influências culturais e vernaculares brasileiras”.

Instituto de Arte Contemporânea (IAC)

Criado em 1951 no Masp, o IAC foi a primeira escola de design industrial do Brasil. Os idealizadores do IAC, Lina Bo Bardi e Pietro Maria Bardi, se inspiraram no Instituto de Design de Chicago, sucessor da Bauhaus de Dessau. O instituto foi aberto ao mesmo tempo em que o museu organizou a exposição retrospectiva do artista suíço Max Bill, que foi um dos expoentes da arte concreta do período e referência importante para os professores e alunos do instituto. Alexandre Wollner, Antônio Maluf, Emilie Chamie e Maurício Nogueira Lima são alguns dos designers de maior expressão formados na escola. O IAC encerrou suas atividades em 1953.

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP)

Fundada em 1948, a faculdade se estruturou a partir da influência de duas escolas: as engenharias, sediadas na Escola Politécnica, e as belas artes, da Escola Nacional de Belas Artes. Na década de 1950, o ensino e a pesquisa passaram a incorporar progressivamente influências do legado da Bauhaus. O prédio da faculdade, projetado em 1961 por Vilanova Artigas, expressa os princípios da Escola Paulista: ênfase nas estruturas, emprego de técnicas construtivas industriais, uso de concreto armado aparente e amplos vãos livres, rampas e espaços abertos. A FAU-USP implantou cursos de desenho industrial na grade curricular obrigatória na reforma de 1962 e se tornou, ao lado da Esdi, um dos centros de produção do design no Brasil, formando gerações de profissionais.

Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi)

Inaugurada em 1963 no Rio de Janeiro, a Esdi foi fortemente influenciada pelo trabalho de Max Bill e pelas ideias desenvolvidas na Escola Superior da Forma (Hochschule für Gestaltung Ulm), conhecida como Escola de Ulm - importante centro de ensino de design herdeiro da Bauhaus. Karl Heinz Bergmiller, Alexandre Wollner, Décio Pignatari e Aloísio Magalhães lecionaram na Esdi, que hoje é uma unidade da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).


Mara Gama é jornalista especializada em design.

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