Comunismo, Nobel e a história de um editor de José Saramago

Na Editorial Caminho, Zeferino Coelho publicou sucessos do escritor português

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Jorge Henrique Bastos

[RESUMO] O português Zeferino Coelho fala de suas cinco décadas no mercado editorial, cujo ponto alto foi a parceria com o primeiro e ainda único escritor de língua portuguesa a ganhar o Nobel de literatura.

O perfil esguio, com cabelos grisalhos e cavanhaque, assemelha-se a uma mescla de Dom Quixote e Trótski. Trata-se, contudo, de Zeferino Coelho, 74 anos, 50 deles dedicados ao trabalho como editor.

O balanço dessa atuação é significativo. Tem como cenário os anos finais do fascismo lusitano, a militância no PCP (Partido Comunista Português) e a descoberta do único autor de língua portuguesa que venceria o Nobel de Literatura, José Saramago. Coelho revelou ainda oito vencedores de prêmios Camões, o mais importante dos falantes do idioma.

O percurso do editor está repleto de histórias —e a mais fascinante para o leitor brasileiro é a de sua amizade com o autor de “Memorial do Convento” (1982). Nascido em Paredes, pequena cidade do Norte de Portugal, Zeferino Coelho formou-se em filosofia na Universidade do Porto. Ainda jovem ligou-se ao PCP, o que o aproximou de Saramago.

A labuta editorial começou em 1969, momento político em Portugal em que o turbilhão recrudescia nas colônias africanas, com o estourar de conflitos em Angola e Moçambique. O jovem encarou o desafio, conforme conta à Folha: “Como não existia liberdade de expressão e qualquer passo em falso era reprimido, a vida de uma editora decorria com muita dificuldade. Tudo o que se fazia tinha sempre no horizonte ameaça de repressão. E tudo —seleção de livros, redação de textos de apoio, leitura dos originais— era condicionado por essa ameaça”.

Tal realidade foi o ponto de partida da sua caminhada, procurando suplantar os obstáculos na busca de obras para compor um catálogo, mantendo a linha ética, enfrentando a censura e as condicionantes do regime salazarista que estava à beira de cair, mas ainda oprimia a sociedade portuguesa.

Após anos, já na ressaca da Revolução dos Cravos (1974), Zeferino Coelho participa da criação da Editorial Caminho, em 1977. A editora pertencia ao PCP, mas os editores tinham independência. “O 25 de Abril [data da Revolução dos Cravos, que depôs o regime ditatorial em 1974] transformou completamente a vida em Portugal. A Caminho começou a publicar livros nessa época. Eu e os meus colegas conhecíamos bastante bem aquilo a que se chama ‘mercado’ porque éramos intervenientes entusiásticos nele.”

O editor afirma seguir um alinhamento sem imposições laterais, livre de interferências ideológicas. “Atuamos com total liberdade. Nunca publicamos, nem deixamos de publicar, um livro ou um autor por causa de suas ideias políticas. Nunca perguntei a ninguém qual era a sua filiação partidária.” Foi nesse ambiente que se efetivou o encontro com Saramago, consolidado numa parceria singular, que culminou com o Nobel de literatura, em 1998.

O primeiro livro publicado por Saramago na editora foi uma peça de teatro, “A Noite” (1979). A obra reproduzia a passagem de 24 para 25 de abril de 1974, numa Redação de jornal, quando o salazarismo é deposto pelos militares insurrectos. Essa revolução impactou o mundo, repercutiu no Brasil com apoios entusiasmados, cujo exemplo ilustre é a música “Tanto Mar”, de Chico Buarque.

Enquanto no Brasil o processo de abertura se divisava no horizonte, presos políticos eram soltos e exilados regressavam ao país, em Portugal o espectro fascista ia sendo superado e outras demandas surgiam.

Em 1980, Zeferino Coelho, recebe as páginas datilografadas do romance “Levantado do Chão”. Com êxito de crítica, Saramago começa a conquistar seu lugar na história da literatura lusitana. “Minha relação com Saramago foi excelente desde o primeiro dia. Discutíamos o que havia para discutir, combinávamos o que fazer e a partir daí tudo corria sem problemas.”

O estilo característico se imprime logo à partida, e o editor percebe isso. “Não só não me incomodou como me conquistou. Aquele modo de escrever é ‘música em prosa’. Uma vez descoberta a clave, e ela oferece-se ao leitor, a leitura é fluente e sem quaisquer dificuldades.”

“‘Levantado do Chão’ causou grande entusiasmo pela sua forma, e era todavia um livro sobre a reforma agrária”, ressalta. “Isso em 1980 ainda incomodava a muita gente, mas alargou sua base de apoio social.” O editor não tinha dúvidas, o livro revelava um nome que poderia se tornar um grande escritor.

De fato, a década de 1980 acumula, para ambos, resultados extraordinários. Nesse período saíram os romances “Memorial do Convento” (1982), “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (1984) e “A Jangada de Pedra” (1986). Saramago fortaleceu nessa fase sua base ficcional e estilística, principiou seu voo rumo ao sucesso internacional. “‘Memorial do Convento’ mantém a riqueza formal, e até porventura a amplia, e não suscitava tão vastas rejeições ideológicas da parte do público.”

Enquanto colhia o êxito de apostar num autor que se tornara relativamente conhecido, o editor erige outro marcante projeto editorial, a coleção infantojuvenil chamada “Uma Aventura”, que já vendeu mais de 8 milhões de exemplares. “Pode dizer-se que, sem a coleção, assim como sem José Saramago e alguns outros autores, a Caminho hoje não existiria”, afirma.

No início dos anos 1990, uma das obras mais polêmicas do futuro Nobel, “O Evangelho segundo Jesus Cristo” (1991), viria a determinar sua mudança para a ilha espanhola de Lanzarote, onde viveu até morrer.

Quando um político censurou o romance, despertou a indignação em vários quadrantes da sociedade portuguesa. Zeferino Coelho acompanhou a querela. “Um subsecretário de Estado teve a ousadia de impedir a candidatura desse livro a um prêmio atribuído pela União Europeia. Nunca tinha acontecido nada de semelhante em Portugal após o 25 de Abril. Como nos habituamos depressa a viver em liberdade, o repúdio por tal atitude foi unânime. O subsecretário desapareceu pouco depois e ainda não voltou a aparecer.”

“Quando o episódio aconteceu, Saramago declarou que nunca mais participaria de qualquer cerimônia a que estivesse presente o então primeiro-ministro, um político medíocre conhecido pelo nome de Cavaco Silva [Aníbal Cavaco Silva], a menos que ele pedisse desculpas pelo insulto público que lhe fizeram. Isso nunca aconteceu com esse político. Mas aconteceu mais tarde por um primeiro-ministro do mesmo partido, Durão Barroso, hoje alto funcionário do banco Goldman Sachs.”

O romance censurado salvou a editora da falência. “Em 1991, a editora passou por uma grave crise, e a sua existência estava sob ameaça. Os bancos com os quais trabalhávamos estavam na disposição de nos cortar o crédito, o que significaria a liquidação da casa. Pedimos aos autores cujos livros atingiam maiores vendas, entre os quais estava Saramago, uma moratória no pagamento de direitos de autor. Todos a concederam. E ao principal banco com que trabalhávamos explicamos o que significaria, do ponto de vista econômico, a edição de um novo livro de José Saramago, com o título ‘O Evangelho Segundo Jesus Cristo’. Nossos interlocutores perceberam o que queríamos dizer e deixaram de nos colocar problemas.”

Zeferino Coelho prosseguiu na publicação de autores de língua portuguesa, produzindo sucessos. Passaram por seu crivo editorial o moçambicano Mia Couto, o cabo-verdiano Germano Almeida e o angolano Luandino Vieira. Contudo, sua admiração inabalável pende para um brasileiro, Graciliano Ramos, a quem daria o Nobel de Literatura.

O editor lamenta não reproduzir com os brasileiros os resultados obtidos com autores africanos. “Custa-me muito dizê-lo, mas a verdade é que com autores brasileiros não alcançamos nunca um grande êxito do ponto de vista comercial. Não conseguimos nós e não conseguiu ninguém em Portugal, exceto talvez a editora Dom Quixote com alguns livros de Jorge Amado e Chico Buarque. De Graciliano Ramos fizemos em tempos aquilo que um brasileiro uma vez qualificou como sendo a mais bela edição que o velho Graça alguma vez teve. Tenho vergonha, como editor e como português, destes resultados, mas não tenho outros e nem sequer sei explicá-los”.

Sobre o Nobel de Saramago, editor recorda o dia em que o prêmio chegou, em outubro de 1998. “Saramago estava em Frankfurt, de regresso a casa depois de na véspera ter participado em atividades. Quando a notícia de que lhe atribuíram o prêmio foi dada, ele não tinha ainda embarcado e eu fui buscá-lo ao aeroporto de regresso à feira, onde foi recebido por milhares de pessoas com o maior entusiasmo. Frequento Frankfurt desde há 40 anos e não me recordo de acontecimento semelhante.”

Para a Caminho, foi a consagração que faltava a coroar uma aposta iniciada anos atrás. Amigos por 35 anos, editor e autor só se separaram com a morte de Saramago, em 2010; e definitivamente em 2014, quando as herdeiras do escritor resolveram mudar de casa, aceitando os 500 mil euros de antecipação oferecidos pela Porto Editora.

Hoje, o editor mantém seu cotidiano na Leya, grupo editorial ao qual agora pertence a Caminho, além da esperança em que ainda haverá um outro escritor de língua portuguesa suscetível de arrebatar o Nobel.

“O grande desafio das literaturas em língua portuguesa é terem que participar numa luta desigual com outras línguas servidas por forças mais poderosas. Esperemos que em breve um escritor brasileiro, cabo-verdiano, angolano, moçambicano, ou mesmo de novo um português, seja premiado com o Nobel. Seria um acontecimento extraordinário para o prestígio da língua que falamos.”


Jorge Henrique Bastos, jornalista, poeta e tradutor, é autor de “Hemorragia”.

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