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Documentários brasileiros dos anos 1960 e 1970 chegam à internet

Curtas e médias-metragens foram produzidos por grupo liderado pelo fotógrafo Thomaz Farkas

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Juliana de Arruda Sampaio Guilherme Farkas

Considerado um dos pais da fotografia moderna brasileira ao lado de Geraldo de Barros e German Lorca, Thomaz Farkas contribuiu para a formação e a consolidação do cinema documentário moderno brasileiro. 

Nos anos 1960 e 1970, Farkas reuniu um grupo de jovens cineastas —Geraldo Sarno, Paulo Gil Soares, Sérgio Muniz, Maurice Capovilla, Guido Araújo, Manuel Horácio Gimenez, Affonso Beatto, Lauro Escorel, Eduardo Escorel, Sidney Paiva Lopes, Edgardo Pallero, Vladimir Herzog, entre outros— com entendimentos político-ideológicos que serviram de base para um conjunto de filmes que ficaram conhecidos como Caravana Farkas. Essas obras são agora reunidas no site em homenagem a Farkas, onde 35 curtas e médias-metragens restaurados estão disponíveis de forma gratuita.

O processo de digitalização e acesso aos filmes remonta ao esforço de Sérgio Muniz e do próprio Farkas para a mostra “A Caravana Farkas - Documentários - 1964 - 1989”, no CCBB, em 1997. Foi realizado um processo de telecine das matrizes em 35mm e 16mm, depositadas na Cinemateca Brasileira, para o suporte em vídeo (Beta). A plataforma online visa potencializar a difusão e acesso aos filmes, objetivo de Farkas.

Os filmes foram realizados numa época em que circulava entre as elites culturais e intelectuais de esquerda discussões sobre o que seria a “realidade brasileira”, o “Brasil profundo, autêntico”, ao mesmo tempo em que se especulavam as consequências do “subdesenvolvimento”. 

Nas entrevistas de Farkas e de cineastas do grupo, é recorrente a preocupação em compreender e interpretar a realidade brasileira. O que  os movia era “mostrar o Brasil aos brasileiros” pelo registro de manifestações culturais populares (nordestinas, sobretudo) e suas transformações face ao processo de urbanização e massificação da cultura. 

Sobre escolhas estéticas que nortearam as produções, é preciso ressaltar diálogos com o cinema-verdade, de Jean-Rouch e Edgard Morin, e com o cinema direto de Robert Drew e os irmãos Maysles, respectivamente na Europa e nos EUA, além da Escuela Documental de Santa Fé, na Argentina —sobretudo na figura do cineasta e teórico Fernando Birri

O uso de equipamentos leves, como a câmera 16 mm e o gravador portátil Nagra, permitia, como nessas experiências estrangeiras, a formação de equipes de filmagens menores (fundamental para rodar o Nordeste brasileiro com financiamento próprio), o que barateava e facilitava as operações.

Outro elemento de aproximação com as referidas escolas é a presença de entrevistas, narrações e/ou depoimentos que serviam muitas vezes como confirmação ou ilustração de uma tese do filme. 

Por essa gama de soluções técnicas e escolhas de abordagens, a crítica e a historiografia brasileiras se habituaram a considerar o conjunto de filmes da Caravana como exemplares de um “modelo sociológico”.

Seminal, neste sentido, é a leitura de Jean-Claude Bernardet em “Cineastas e Imagens do Povo” (1985), que tomou “Viramundo” e “Subterrâneos do Futebol” como expressões de tal modelo. Segundo o crítico, a concepção, a escolha dos personagens, a narrativa, a montagem, todo o processo do filme é feito a partir de uma tese que tenta se comprovar e se estabelecer como verdade. 

No caso de “Viramundo”, cujo tema é o fluxo migratório dos trabalhadores nordestinos rumo ao sudeste, Bernardet salienta a maneira como o filme lança mão das relações de seus realizadores com a USP para conferir-se autoridade científica, como se vale dos depoimentos e entrevistas de alguns personagens na medida em que estes confirmam sua tese, como utiliza a voz em off para criar distância e autoridade em relação ao assunto abordado: tudo isso para provar o próprio ponto.

Essa é a leitura mais corrente sobre a Caravana Farkas. Mas, como se trata de um conjunto de 35 filmes, muitos destes são ainda pouco estudados e ficaram à sombra de exemplos eleitos —e de sua leitura.

A empreitada de disponibilizar a Caravana em sua totalidade (e outros títulos como “Hermeto Campeão” e “Um a Um”, realizados já nos anos 1970 e 1980) se apresenta como um convite de retorno a essa história. 
Lança-se a pergunta: todos os filmes correspondem ao tal “modelo”? “Rastejador”, “Beste”, “Viva Cariri!” e “O Homem do Couro” são exemplos de como a produção é ampla e antecipou gestos formais que o cinema documentário brasileiro empreenderia mais tarde, como apontou a pesquisadora Claudia Mesquita (“A Caravana Farkas e Nós”, na revista “Sinopse”, setembro de 2006).

O caráter disruptivo e assincrônico da relação entre som e imagem em “Beste”, o deslocamento da percepção aí originado e seus desdobramentos oferecem-nos pistas de caminhos criativos que talvez não caibam em formulações rígidas.  

Além do conteúdo audiovisual, encontram-se no site a tese de doutorado de Farkas, fotografias das gravações, cartazes, frames, prêmios recebidos e outros extras. 

Num país onde se queimam museus e em que a manutenção e o conhecimento de arquivos são precários, o esforço é o de pensar estratégias de salvaguarda e disponibilização de documentos históricos no meio digital. 


Juliana de Arruda Sampaio é antropóloga e pesquisadora.

Guilherme Farkas, graduado em cinema pela UFF (Universidade Federal Fluminense), é diretor de som e neto de Thomaz Farkas.

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