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Duplas atualizam noção de autoria nas artes visuais

Obras coletivas ganham espaço e valor em exposições e no mercado

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Daniel Rangel

A exposição “Meteorológica”, em cartaz no Espaço Cultural Porto Seguro, em São Paulo, exibe um recorte da consistente trajetória de Detanico Lain. Um percurso de mais de 20 anos marcado por grande rigor formal e pesquisa poética que conecta as artes visuais com o design e a literatura de maneira singular.

A mostra reúne trabalhos de diferentes períodos e suportes que ocupam com harmonia a difícil arquitetura expositiva do local. As video-instalações são os destaques: “Chuva Colorida” e “Ulysses”, no andar térreo, e “Quadrado Branco” e “Mares da Luz”, abrigadas na sala inferior, aguçam os múltiplos sentidos e impressionam pela sofisticada simplicidade e pela visualidade inebriante.

Detanico Lain é uma dupla formada por Angela Detanico e Rafael Lain, parceiros de arte e de vida, que assinam como “um único artista” desde 1996. É cada vez mais frequente encontrar em museus e galerias obras assinadas por um único nome, mas que na verdade são trabalhos coletivos de dois, três ou mais artistas.

O grupo Gutai, do Japão, que possui uma série de obras periodicamente expostas em Inhotim, é um dos precursores na realização coletiva no meio das artes visuais. A partir dos anos 1950, o grupo realizou uma série de ações, assinadas como Gutai, que misturavam performances e pinturas abstratas.

Antes encarado como uma companhia de dança ou de teatro experimental, o Gutai, há alguns anos, foi absorvido pelo sistema de arte e reconhecido como um coletivo, tendo suas obras, na maioria registros das ações realizadas, espalhadas por museus de todo o mundo.

Basicamente, o que os diferencia de um grupo de artistas não chamado de coletivo, como os neoconcretos, é o fato de abdicarem da autoria individual, historicamente uma das principais características das artes visuais.

No Brasil, temos importantes grupos históricos com artistas famosos, como o “Grupo dos Quatro”, formado pelo quarteto modernista Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade e Oswald de Andrade; o Ruptura, dos concretistas paulistas; o Frente, do movimento carioca; os neoconcretos. Todos os integrantes, entretanto, assinavam seus trabalhos individualmente.

Somente a partir do 3Nós3 —formado por Hudnilson Jr., Mario Ramiro e Rafael França— rompeu-se a regra personalista da criação artística no país. O coletivo, que esteve presente na cena entre os anos 1979 e 1982, foi o primeiro a apresentar trabalhos, a maioria ações públicas, no circuito das artes visuais brasileira assinados como um grupo.

O 3Nós3 foi resgatado há alguns anos por meio de pesquisa e difusão de curadores e instituições e do trabalho cuidadoso da galerista Jaqueline Martins, que comercializa obras do coletivo. Três fotografias originais de registros de suas ações foram recentemente incorporadas ao acervo do MAM de São Paulo e encontram-se em exposição neste momento. Entretanto, apesar da boa inserção atual no circuito institucional de exposições em museus, bienais e residências, a maioria dos coletivos ainda não está devidamente incorporada ao mercado de artes.

O Opavivará!, que participou das 31º e 32º Bienal de São Paulo, é um dos principais em atividade no país e faz parte de uma rede global organizada que reúne coletivos.

O grupo é formado por artistas de diferentes linguagens, residentes no Rio de Janeiro, e realiza, por meio de intervenções públicas e instalações, trabalhos que defendem causas coletivas, como o meio ambiente e a igualdade. Seguramente o valor das obras do Opavivará! é bem menor que o da maioria dos artistas individuais que também passaram por duas bienais recentemente.

Temáticas ambientais, políticas e sociais são recorrentes na atuação de coletivos maiores, formados por mais de três artistas, como o já citado Opavivará!, o Contrafilé, de São Paulo, o GIA, de Salvador, o Poro, de Belo Horizonte, entre outros. Além disso, a produção formal nesses casos está mais associada às ações performáticas em espaços públicos que aos objetos colecionáveis. Talvez esses sejam dois motivos que expliquem a resistência do mercado.

Uma situação diferente acontece com as duplas. Apesar de assinarem as obras como “um artista”, como os coletivos maiores, conseguem um trânsito mais equilibrado entre todos os setores da cadeia e são mais valorizados pelos colecionadores.

Normalmente os trabalhos dessas duplas não estão relacionados necessariamente a causas sociais e frequentemente abordam questões artísticas mais formais ou conceituais. Outra característica recorrente é a mistura entre arte e vida: não só dividem o mesmo ateliê e ideias como também compartilham muitas vezes a criação de filhos e o andamento da casa.

Além de Angela e Rafael, são exemplos de casais ou ex-casais que seguem trabalhando juntos Gisela Motta e Leandro Lima; Bárbara Wagner e Benjamin de Burca —estes últimos selecionados para conceber o Pavilhão do Brasil na próxima Bienal de Veneza, em maio.

Os coletivos, além de símbolos de união e de resistência, vêm rompendo com a imagem do artista gênio que cria sozinho em seu ateliê, além de atualizarem a noção de autoria nas artes visuais —já questionada há mais de cem anos por Duchamp.


Daniel Rangel é curador e mestrando em poéticas visuais pela USP.

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