Integrante do Pussy Riot declara guerra à apatia política

Nadya Tolokonnikova, que ficou presa por quase um ano na Rússia, faz 'guia punk'

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Nadya Tolokonnikova

[RESUMO] Trecho de "Pussy Riot – Um Guia Punk para o Ativismo Político", livro de integrante do grupo Pussy Riot que sai no Brasil em abril pela editora Ubu; presas em show com críticas a Vladimir Putin e à Igreja Ortodoxa numa catedral de Moscou, em 2012, a autora e uma colega foram anistiadas no ano seguinte.

Proposições preliminares

Quando eu tinha 14 anos, escrevi um artigo sobre poluição e mudança climática e o levei à redação de um jornal local. Lá me disseram que eu era uma menina bem legal e que até que não escrevia mal, mas que seria melhor me ater a escrever sobre o zoológico. O artigo sobre os níveis catastróficos de poluição da minha cidade natal não foi publicado. Fazer o quê? Enfim.

Vivi muitas coisas desde então, entre elas ser presa e passar dois anos na cadeia. No fundo, porém, nada mudou para valer. Continuo fazendo perguntas que incomodam. Aqui, ali, em todo canto.

Essas perguntas, ainda que não tenham respostas em certos casos, sempre me motivaram a agir. Creio que dediquei a minha vida ao ativismo. Minhas amigas e eu começamos a reivindicar o espaço público e a participar de manifestações políticas há bastante tempo, em 2007, quando éramos apenas umas molecas de 17 ou 18 anos. Fundamos o Pussy Riot em outubro de 2011, mas antes passamos cinco anos fazendo pesquisas formais e profundas sobre ativismo, aprendendo a fugir da polícia, a fazer arte sem grana nenhuma, a pular cercas e a fabricar coquetel molotov.

Nasci alguns dias antes da queda do Muro de Berlim. Naquele momento, acreditava-se que, após a suposta eliminação do paradigma da Guerra Fria, enfim passaríamos a viver em paz... Não foi bem assim. O que vimos, na verdade, foi um aumento astronômico da desigualdade, as oligarquias ganhando cada vez mais poder ao redor do mundo, a educação e a saúde públicas sendo ameaçadas, além de uma crise ambiental provavelmente irreversível.

Quando Trump ganhou a eleição presidencial, as pessoas ficaram profundamente chocadas. Na verdade, o que aconteceu em 8 de novembro de 2016 foi a ruptura do paradigma do contrato social —a ideia de que podíamos viver confortavelmente sem sujar as mãos nos envolvendo com política, de que bastava um voto a cada quatro anos (ou voto nenhum: o pressuposto de que se está acima da política) para resguardar as próprias liberdades.

Essa crença —a de que as instituições estão aqui para nos proteger e zelar por nós, e de que não precisamos nos preocupar em proteger essas instituições da corrupção, de lobistas, dos monopólios, do controle corporativo e governamental sobre nossos dados pessoais— veio abaixo. Nós terceirizávamos a luta política da mesma forma que terceirizávamos as vagas de trabalho mais mal remuneradas e as guerras.

Os sistemas atuais não conseguiram oferecer respostas aos cidadãos, de modo que as pessoas começaram a buscar soluções fora do espectro político dominante. Essas insatisfações estão agora sendo usadas por políticos de direita, xenófobos, oportunistas, corruptos e cínicos.

Os mesmos que ajudaram a criar e a agravar esse cenário vêm agora nos oferecer salvação. Esse é o jogo deles. É a mesma estratégia de cortar os fundos de um programa ou uma agência reguladora dos quais eles queiram se livrar e depois usar a ineficácia resultante disso como prova de que essas iniciativas ou órgãos precisam ser desfeitos.

Se a agressão nacionalista, o fechamento de fronteiras e os excepcionalismos [a crença na sua superioridade em relação aos demais] de todo tipo realmente funcionassem para a sociedade, a Coreia do Norte seria o país mais próspero do planeta. Mas ainda que nada disso tenha dado certo, as pessoas continuam apostando as fichas nessa ideia.

Isso explica o êxito de Trump, do Brexit, de Le Pen, Orbán, e assim por diante. Na Rússia, o presidente Putin também faz o mesmo jogo: explora o complexo de raiva, sofrimento e empobrecimento do povo russo, causado pela crise econômica, a privatização maquiavélica e a desregulamentação ocorridas nos anos 1990.

Posso não ser presidenta nem deputada. Não tenho muito dinheiro nem poder. Mas uso minha voz para dizer humildemente que, fazendo uma retrospectiva do século 20, o nacionalismo e o excepcionalismo me dão arrepios.

Agora, mais do que nunca, precisamos reivindicar o poder que está nas mãos dos políticos, dos oligarcas e dos interesses ocultos que nos colocaram nesta situação. Chega de nos comportarmos como se fôssemos a última espécie da Terra.

O futuro nunca nos prometeu ser um mar de rosas, ou progressista, ou seja lá o que for. As coisas podem piorar. Elas têm piorado no meu país desde 2012, ano em que o Pussy Riot foi colocado atrás das grades e Putin se tornou presidente pela terceira vez.

Sem dúvida, nós do Pussy Riot tivemos muita sorte de não termos sido esquecidas nem abandonadas quando fomos silenciadas pelos muros da prisão.

Todos os interrogadores que falaram conosco após nossa prisão recomendaram que a) desistíssemos; b) nos calássemos e c) declarássemos amor incondicional por Vladimir Putin. “Ninguém liga para o que vai acontecer com vocês; vão morrer aqui na prisão, e ninguém vai ficar sabendo. Não sejam burras —digam que adoram Putin”. Mas insistimos que não. E muitos nos apoiaram em nossa teimosia.

Muitas vezes me sinto culpada por todo o apoio que as pessoas deram ao Pussy Riot. Foi incrível. Existem muitas pessoas presas por motivos políticos em nosso país, e, infelizmente, a situação está piorando. Os demais casos não atraem a atenção midiática que certamente merecem. Infelizmente, as condenações de ativistas políticos foram naturalizadas na opinião pública. Quando pesadelos tornam-se constantes, as pessoas param de reagir. É assim que a apatia e a indiferença triunfam.

As dificuldades e os fracassos não são razão suficiente para renunciarmos ao ativismo. Sim, as mudanças sociais e políticas não se dão de forma linear. Às vezes é preciso lutar por anos para obter um resultado mínimo. Mas, em outras ocasiões, é possível transpor montanhas de uma hora para a outra. Nunca se sabe. Prefiro continuar tentando conquistar mudanças graduais com humildade, mantendo a perseverança.

Somos superpotências

Fala-se muito da Rússia nos Estados Unidos hoje em dia. Mas muita gente não sabe como a Rússia realmente é. Qual a diferença entre um país tão bonito, cheio de pessoas maravilhosas, criativas e dedicadas e o seu governo cleptocrático? Muita gente se pergunta como é viver sob o domínio de um homem autoritário e misógino, detentor de um poder quase absoluto. Posso dar algum vislumbre de como é esse mundo.

A relação entre a Rússia e os Estados Unidos é um verdadeiro desastre. E eu, como se sofresse de uma estranha compulsão quase masoquista, aprecio o percurso que tenho seguido à sombra desses dois impérios. Minha existência se dá em algum ponto entre essas gigantescas máquinas imperialistas.

Não me importo com fronteiras (embora as fronteiras se importem comigo). Sei que existe poder na união interseccional, inclusiva e internacional de quem se importa mais com as pessoas do que com dinheiro ou status.

Somos mais do que átomos, separados uns dos outros, assustados pela tv e pela desconfiança mútua, confinados em casa e no iPhone, descarregando a raiva e o ressentimento contra nós mesmos e contra os outros. Não queremos viver em um mundo onde todos estão à venda e não resta lugar para o bem comum. Desprezamos essa abordagem cínica e estamos prontas para lutar. Mais do que isso, estamos fazendo mais do que resistir. Somos proativas. Vivemos de acordo com nossos valores no momento presente.

Quando tento encontrar palavras para falar da política mundial numa abordagem mais holística, quando proponho um debate sobre o futuro do planeta, e não sobre as ambições e a riqueza das nações, inevitavelmente começo a parecer ingênua e utópica para muita gente. Por algum tempo acreditei que isso se devia às minhas parcas habilidades de comunicação pessoal, e talvez isso seja de fato parte do problema. Mas vejo esse fracasso das palavras como um sintoma de algo maior. Nunca chegamos a desenvolver uma linguagem com a qual pudéssemos discutir o bem-estar da Terra como sistema. Categorizamos as pessoas de acordo com a procedência, sem aprendermos a falar delas como parte da espécie humana, mais ampla.

Sobrevivemos à crise dos mísseis cubanos e a muitos outros desafios. E agora, sem resistir, retrocedemos ao antigo paradigma da Guerra Fria. O Boletim dos Cientistas Atômicos ajustou o Relógio do Juízo Final para dois minutos e meio antes da meia-noite. As ameaças globais são piores agora do que quando se produziu a Iniciativa de Defesa Estratégica dos Estados Unidos nos anos 1980. E nos comprazemos em poder novamente culpar nossos contrários, um inimigo externo.

Quando duas pessoas passam um longo tempo se enfrentando, elas acabam ficando cada vez mais parecidas uma com a outra. Você espelha seu/sua oponente, e é sempre possível que, mais cedo ou mais tarde, você se torne indistinguível dele/dela. É um jogo de imitação sem fim. Quando seu/sua oponente é uma pessoa de grandes qualidades, talvez o espelhamento seja bom para você. Mas, quando se trata de uma relação entre impérios, o resultado geralmente é desastroso.

Quando Putin precisa implementar uma nova lei absurda entre os russos, ele se respalda nas práticas americanas. Quando a polícia russa é autorizada a se comportar violentamente em relação aos manifestantes, ela diz: “Por que você está reclamando? Nos Estados Unidos você já teria sido morto por um policial se protestasse desse jeito”. Quando defendo a reforma penitenciária na Rússia e digo que nenhum ser humano deveria ser torturado e privado de medicação, as autoridades locais me dizem: “Veja Guantánamo, lá é ainda pior!”. Quando Putin investe mais recursos no complexo militar-industrial em vez de cuidar de uma infraestrutura que está caindo aos pedaços, ele diz: “Veja o que fazem na Otan! Veja os drones! Veja os bombardeios no Iraque!”.

É verdade. Pior que é verdade. Ainda assim, acredito que a pergunta a fazer é a seguinte: quem tomou essa decisão de copiar o pior, e quando?

Quando meu governo contrata brutamontes para me bater e queimar meus olhos com uma substância verde cáustica, o que dizem é: a) você é uma vadia antirrussa, b) seu objetivo é destruir a Rússia, c) você está sendo paga pela Hillary, d) volte para os Estados Unidos. E quando alguém nos Estados Unidos questiona o poder e as bases das narrativas oficiais, é rotulado como antiamericano. Como diz Noam Chomsky (e ele sabe do que está falando): “Assim como na União Soviética, o ‘antissovietismo’ foi considerado o mais grave de todos os crimes [...]. Até onde sei, os Estados Unidos são a única sociedade livre na qual esse conceito vigora. O ‘americanismo’, o ‘antiamericanismo’ e a ausência de ‘antiamericanismo’ são noções que combinam bem com a ‘harmonia’ e a ideia de se livrar desses ‘intrusos’”.

O panorama é sombrio. Faz com que pensemos que a política é chata e inútil e que não vale a pena nos envolvermos com ela, porque não temos como alterar esse quadro. Mas digo que é possível. Basta tratarmos do assunto tendo em mente pessoas de carne e osso. É simples: a assistência médica, a educação, o livre acesso à informação, sem censura. Temos de parar de gastar nossos recursos com drones, mísseis balísticos intercontinentais e serviços de inteligência excessivamente voyeurísticos. Temos que remunerar as pessoas pelo trabalho ao qual se dedicam; não somos escravos. Estamos falando de direitos, não de privilégios. E tudo isso é possível —mudar o estado das coisas é muito mais factível do que nos fizeram acreditar.

Putin continua no poder, mas não porque as pessoas estejam felizes com a sua forma de governar. Constatamos que estamos ficando cada vez mais pobres enquanto Putin e sua equipe estão ficando cada vez mais ricos. Mas (há sempre um “mas”) o que podemos fazer, você e eu, se é impossível mudar as coisas? É o que nos dizem.

Se tivéssemos que apontar um inimigo, eu diria que nosso maior inimigo é a apatia. Se não estivéssemos de mãos atadas pela ideia de que é impossível mudar as coisas, seríamos capazes de alcançar resultados fantásticos.

O que nos falta é a confiança de que as instituições podem realmente funcionar melhor e de que nós somos capazes de fazê-las funcionar melhor. As pessoas não acreditam no enorme poder que elas têm, mas que, por algum motivo, não usam.


Nadya Tolokonnikova, artista visual e ativista russa, é integrante da banda Pussy Riot.

Tradução de Jamille Pinheiro Dias e Breno Longhi.

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