Epidemia de indignação destrói capacidade de discutir, diz autor

Para escritor, é preciso que nos libertemos da tirania de opiniões e julgamentos

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Salvatore Scibona

Em "The Country Husband", conto de John Cheever de 1954, um homem vai a um jantar em um subúrbio de Nova York e reconhece a nova empregada de seu anfitrião, mas de onde? De repente, a cena lhe volta à mente: anos antes, no fim da Segunda Guerra Mundial, em um vilarejo francês para onde fora destacado, ele tinha visto essa mesma mulher –a "escolhida" do comandante alemão que controlava a aldeia– ser levada para o meio da rua. Seus vizinhos zombavam enquanto um homem baixinho cortava o cabelo da moça e depois lhe raspava a cabeça. A seguir, forçaram-na a tirar as roupas. Alguém cuspiu nela. Chorando, nua, a não ser pelos sapatos gastos, ela se afastou do povoado sozinha.

Imagine, se conseguir, esse episódio nos dias de hoje: o vídeo viral, a cena registrada, compartilhada, arquivada, nunca esquecida, sua popularidade medida em visualizações. Em vez da aglomeração de algumas dezenas de pessoas em uma cidadezinha com uma igreja e um único restaurante, pense nos milhares, ou milhões, propagando sua culpa nas seções de comentários, tuítes e postagens de blog, muitos dos quais disponíveis para sempre, para qualquer um, o tempo todo. Ao "réu" é negada até a benevolência do exílio.

Estamos vivendo uma revolução industrial da exposição alheia, na qual as novas tecnologias expandiram drasticamente nossa capacidade de fazer e distribuir um produto —no caso, o julgamento que fazemos uns dos outros. E, como em fenômenos semelhantes no passado, a manufatura em massa e o uso de um item que antes era disponível apenas para poucos, ou em pequenas quantidades, nos dão o poder de causar danos em uma escala até então inimaginável.

Os réus, levados para o meio da rua virtual, são não só figuras públicas como pessoas que até então passavam despercebidas –o bêbado em um estacionamento, a garota que compartilha em excesso no Instagram. Um dia é o ator acusado de forjar um crime de ódio, no outro é o político que admite ter participado de um concurso de dança com o rosto pintado de preto, é o sorriso do estudante que parece incorporar o privilégio desdenhoso de sua classe social, é o massacre do grupo que descreveu o tal sorriso para constranger o garoto, baseado em evidências preliminares. Mencionar qualquer um desses exemplos é convidar à objeção: "Dessa vez foi bem merecido!" Talvez, mas será que não há outra maneira de debater essas controvérsias sem que se tenha de discutir se o infrator merecia a punição?

A cultura da mídia encontrou um espaço perfeito no consciente coletivo: a revolta. As manchetes são trabalhadas nela, prometendo injustiça. É uma isca estranha, pois nos dá a impressão de ser errado não a morder. Uma vez que ignorar a iniquidade quase sempre resulta em sua perpetuação, podemos nos sentir na obrigação de clicar, ler o tal artigo e ficar fulos. Até a pessoa mais discreta, que não tuíta nem compartilha seus pensamentos em público, se deixa envolver, a consciência exigindo a solidariedade do julgamento no coração, se não em voz alta.

Por mais correta e necessária que seja essa deliberação, será que ela o faz se sentir assim tão bem? Será que não o deixa com uma sensação horrível imediata?

A sabedoria popular nos adverte contra o rigor do julgamento (atire a primeira pedra etc. etc.), mas talvez ele seja consequência do interesse não só pela francesa que Cheever descreve mas também pela pessoa que nela cospe. Interessante que se descreva o desprezo como sendo "amargo", como se pudéssemos prová-lo, feito veneno. Dispensá-lo não parece muito melhor que consumi-lo, mas o que mais poderíamos fazer?

O julgamento serve a um propósito crucial, tanto na vida pública quanto na privada. A abolição, o voto feminino, os direitos civis –foi preciso que muita gente denunciasse essas questões para que as coisas começassem a mudar; o problema é que a tecnologia multiplicou tanto as revoltas com que nos deparamos que embotou nossa capacidade de discutir qualquer outra coisa. O que antes eram controvérsias remotas hoje fazem parte da nossa vida de tal maneira que exigem que algo seja feito, agora, por tudo. Ora, esse é um padrão impossível e desmoralizador; até o ativista mais dedicado pode ajudar a resolver apenas uma pequena parte do que afeta sua consciência. Revoltar-se contra o resto insufla seu desejo de agir, mas não muda nada; no máximo, é a recusa de reconhecimento dos limites de seu poder.

Nestes tempos férteis para a recriminação, precisamos encontrar uma forma de guardar nosso julgamento para os casos que valham as consequências que geram nos outros e em nós mesmos. Em nome dos achincalhados injustamente e da nossa própria saúde mental, poderíamos usar uma alternativa ao julgamento.

Acho que consigo encontrar uma na literatura. Estou falando de histórias que pegam uma pessoa comum e a observam, por horas, anos a fio, por dentro e por fora, e procuram ser, se não objetivas, pelo menos imparciais. George Eliot vê as personagens fazendo bobagens e ainda pede ao leitor que não seja muito duro com elas; Cormac McCarthy consegue usar uma linguagem tão isenta de julgamento que parece, enganosamente, pouco preocupado com a consciência. Em algum ponto entre um e outro, Cheever possui a incrível capacidade (como Joan Didion disse das pessoas com respeito próprio) "de amar e permanecer indiferente". 

Os três têm a habilidade da observação profunda. Quando descrevem em detalhes um conflito que nos força à tomada de posição, mas se abstêm explicitamente de fazê-lo, não estão ignorando os riscos morais, mas sim nos forçando a uma reação que é mais um desafio do que aprovação ou desaprovação. Sob a influência do nosso comedimento, nossa consciência se envolve de outra maneira, como testemunha.

Essa palavra tem um significado mais amplo do que normalmente lhe permitimos. O "Dicionário de Inglês Oxford" define testemunha como, entre outras coisas, "aquele que está ou esteve presente e pode comprovar o fato a partir da observação pessoal". E também inclui um significado mais antigo: "conhecimento, compreensão, sabedoria".

Cheever descreve o "meio sorriso vazio" da mulher, o banquinho de três pernas no qual ela se senta, o bigode grisalho do homem que leva a navalha ao couro cabeludo dela –informações neutras, sensoriais, que se enchem de tensão por causa da crise moral. Basta acrescentar uma palavra julgadora como "diabólico" antes de "bigode" para ver a crise se transformar em um sermão bizarro que não tem o poder de atingi-lo no íntimo.

Testemunhar é ignorar o menos possível. Uma vez que o julgamento quase sempre afeta a capacidade de perceber o que não está de acordo com ele, a testemunha opta por se abster de julgar, pelo menos temporariamente.

Se ela assiste a um documentário sobre a suposta história de abuso infantil de um cantor, não pode contar com a desculpa esfarrapada de que não pôde deixar de ver, pois está admitindo que optou por ver. E, tendo escolhido, tem a responsabilidade consigo mesma de notar o que vê –as cores mutantes dos guarda-chuvas do cantor, que variam a cada dia a caminho do tribunal, a cadeira de couro na qual o denunciante se senta em frente às câmeras.

É o olhar irrefletido –embasbacado, fixo, capaz de absorver somente os aspectos mais indecentes da história– que leva ao acesso de fúria, súbito, forte, nauseabundo. Mas a testemunha, atendo sua sensibilidade a esses detalhes neutros, e não só às alegações revoltantes, interrompe o hábito de condenar e permite criar uma reação moral própria.

É muito comum nos sentirmos presos à tribuna dos jurados, mas a verdade é que nos colocamos ali –e, se o fazemos, também podemos optar por sentar à cadeira das testemunhas. Livres da responsabilidade de chegarmos a um veredito, nosso novo papel é separar o que é suposição de conhecimento. Observar o mundo dessa forma, seja nas páginas ou na rua, nos liberta da tirania de nossas próprias opiniões, mesmo em relação àqueles que se comportaram de maneira considerada imprópria.

E não é uma reação menos consciente, em relação à moral, do que julgar alguém.


Salvatore Scibona, escritor, é autor do romance "The Volunteer", dirige o Centro Cullman para Acadêmicos e Escritores da Biblioteca Pública de Nova York.

Texto publicado originalmente no New York Times.

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