Livro deixa Freud para trás ao propor volta às origens do pensamento de Lacan

Christian Dunker analisa 'Desler Lacan' e o retorno à radicalidade do psicanalista francês

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[RESUMO] Professor da USP analisa livro do psicanalista Ricardo Goldenberg, que defende resgate da radicalidade de noções fundamentais do psicanalista francês, como sujeito e linguagem.

 

Jacques Lacan morreu em 1981, deixando um legado de textos e intervenções orais que desafia intérpretes e comentadores. Assim como acontecera com Freud, sua obra produziu um conjunto de usos, apropriações, desdobramentos e críticas.

O lacanismo contemporâneo, com suas leituras concorrentes do ensino de Lacan, suas redefinições do fazer clínico e suas políticas discursivas, é o objeto de “Desler Lacan”, de Ricardo Goldenberg. Para ele, nosso entendimento do psicanalista francês está demasiadamente atravessado por contingências, interesses e, principalmente, pela precariedade de nossos tradutores.

Jacques-Alain Miller, genro, herdeiro e sucessor institucional de Lacan, teria incorrido na deformação premeditada dos conceitos e da letra do pensador ao estabelecer seus seminários orais de forma pouco rigorosa, empacotando-os em uma leitura padronizada e institucionalmente imposta como hegemônica.

A inépcia da recepção brasileira estaria marcada pela falta de rigor teórico dos psicanalistas nacionais, perifericamente apegados aos comentadores, que teriam substituído a leitura direta de Lacan ou Freud por divulgadores de segunda mão.

Nesse cenário, “Desler Lacan” (336 págs., R$ 65), editado pelo Instituto Langage, representa um salutar apelo crítico e um necessário balanço da conversa. Ousada e original no trabalho de edição, a obra traz uma diagramação com alterações de fundo e contrafundo, mudanças contextuais no tamanho das letras e até mesmo o uso de códigos QR para remeter o leitor a fontes e referências.

Goldenberg cumpre sua promessa de drenar os excessos estilísticos e provincianos, que tornaram o pós-lacanismo intragável e incompreensível, escrevendo de modo fluente e provocativo. A evitação do “lacanês”, a oscilação de discurso —entre referências eruditas e a cultura pop— marcam o bem-vindo espírito de arejamento que ele quer trazer ao assunto.

Segundo Goldenberg, para enfrentar essa mistura de inconsequência conceitual e de degradação política, precisaríamos repetir o gesto fundamental de Lacan nos anos 1950, conhecido como retorno a Freud. O retorno a Lacan demanda desler a cópia infiel, que estamos entendendo por Lacan em nossos dias. É preciso parar com segmentações artificiosas de seu ensino, como as que separam um primeiro Lacan ligado ao simbólico e um último determinado pelo real.

Para isso, faz-se necessário recuperar a radicalidade de noções fundamentais como significante, sujeito e linguagem. A naturalização da ideia de gozo seria a maior responsável por tornar o pós-lacanismo impróprio para consumo clínico. Ou seja, estaríamos diante de um retorno ao naturalismo de Freud, do qual a crítica de Lacan nos tinha livrado. A falsa equivalência entre o conceito freudiano de pulsão e a noção lacaniana de gozo funciona como porta de reentrada da concepção vitalista de corpo, assim como da substancialização do mal-estar social e da moralização do uso de certos prazeres.

O antídoto proposto busca desfazer qualquer ligação do conceito de real com a realidade exterior, considerada independente da linguagem. Não há nada fora da linguagem. Por isso, o gozo não é uma experiência sensível ou dotada de natureza empírica ou imagética. O gozo não é exagero do prazer, nem a satisfação inconsciente mortífera, mas seria apreensível tão somente de modo lógico e topológico.

O psicanalista francês Jacques Lacan em 1971
O psicanalista francês Jacques Lacan em 1971 - Reprodução

Por isso, a noção de campo de gozo deveria restringir-se ao uso clínico com analisantes, sob transferência, em contexto de tratamento. Qualquer aplicação ou extensão ao campo social, filosófico ou cultural corromperia esse princípio, nos fazendo incorrer na psicologização da psicanálise.

O remédio proposto por Goldenberg parece mais amargo do que a doença, e de certa forma ele não a evita, mas a aprofunda. Radicalizar Lacan e deixar Freud para trás implicaria admitir que o materialismo, que fez Freud pensar a psicanálise no campo da ciência, não é o mesmo materialismo da linguagem lacaniana. O freudolacanismo seria assim um mito de transição, que nos levaria a essa metafísica das pulsões, compreensível por motivos políticos, mas que agora pode ser abandonado em nome da autonomia epistemológica de Lacan.

É certo que há muitas equivalências equivocadas entre Freud e Lacan, mas, se jogamos Freud ao mar, junto com ele se vai uma epistemologia. Junto com esta ignoramos todo o esforço de Lacan em refazer e criticar a ontologia freudiana, valendo-se de noções como existência, des-ser e do extenso debate com Aristóteles e a filosofia, culminando na afirmação de que a única substância em psicanálise é o gozo.

Ainda segundo essa nova epistemologia lacaniana, os autores não se comunicariam nem se interpenetrariam, havendo apenas quatro cortes sucessivos: Freud, Lacan, Miller e os demais degenerescentes, e o retorno a Lacan.

Nessa desleitura de Lacan, não há mais substância nem necessidade de explicitar os compromissos ontológicos ou epistemológicos da psicanálise. Sua única razão justificadora é metodológica, pois depende da escrita lógica e topológica, em sua coerência interna. Dessa maneira, a verdadeira psicanálise estaria imune à metafísica e à ideologia por direito de nascença. Matemática sem física, epistemologia sem conceito de realidade, teoria dos números sem função de campo.

O remédio de Goldenberg mostra-se uma espécie de inversão não dialética do realismo naturalista em idealismo formal. Uma desleitura que nos leva de volta a Lacan, mas sem Hegel, para quem a ontologia é incontornável. Um retorno a Saussure sem Lévi-Strauss, para quem as versões narrativas do mito são indispensáveis para pensar sua lógica.

A mobilização do conceito de desleitura (“misreading”) para justificar tal programa não deixa de ser surpreendente. O termo deriva do crítico literário norte-americano Harold Bloom, leitor de Freud e crítico do “new criticism”, que enfatiza a primazia e a autonomia do texto para determinar seu sentido. Bloom recupera a noção de autoria para questionar as leituras internalistas em crítica literária, empregando a noção de narrativa para contestar as abordagens formalistas.

Isto é, Goldenberg usa uma noção que contraria sua própria tese e assim acaba dando razão a uma parte de seus adversários, notadamente os universitários interessados em pesquisar novos conceitos, as feministas mais próximas da psicanálise, os millerianos às voltas com a estabilização de uma interpretação canônica e todos aqueles que não acreditam na indiferença dos psicanalistas em matéria de política.

Leitores fortes e leitores fracos, leitores que matam o pai (o texto inspirador) e que o devoram, como argumenta Bloom, são possíveis apenas no tempo histórico e não no tempo estrutural e imóvel da obra.


Christian Dunker, psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP, é autor de "Por que Ler Lacan?" 

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