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No meio da caatinga, o forró dos violeiros entrou em mim, diz Alceu Valença

Cantor comenta como a cultura agrestina moldou sua formação musical

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Alceu Valença

Na minha infância, eu vivia num local chamado rua dos Palmares, no centro do Recife, e convivia com Nelson Ferreira, o maior maestro de frevo do país. Ele era amigo do meu pai e dirigia uma companhia de discos chamada Rozenblit.

Na rua em que eu morava, passavam blocos de frevo, maracatu, caboclinho, e eu via tudo do terraço da minha casa. A minha música de origem agrestina e sertaneja nasceu naquele ambiente.

Meu pai, Décio de Souza Valença, chegou a ser procurador do Estado de Pernambuco. Ele não queria que eu seguisse a carreira artística: dois irmãos muito talentosos dele tinham se dado mal nesse caminho. Então ele insistia que eu me formasse advogado, que eu nunca enveredasse para a arte.

Mas, quando eu tinha 17 anos, minha mãe foi comigo à rua da Imperatriz e me mandou escolher um instrumento. Peguei um violão, cheio de medo. Suspeito que meus pais tinham feito um pacto, sem eu saber, para deixar que eu comprasse algum instrumento porque eu tinha começado a estudar direitinho na escola.

Acho que meu pai acreditava que eu só ia fazer música para deleite meu, mesmo. Não tive professor de música, não tinha radiola em casa, que era pra eu não ficar ouvindo o tempo todo. Aprendi a tocar pelo rádio, de ouvido. E isso acabou sendo muito bom. Porque eu nunca imitei Beatles nem Rolling Stones nem Roberto Carlos nem Tom Jobim, nada. Fiz tudo da minha maneira.

Por outro lado, eu sei imitar toda a cultura popular que ouvia no rádio, de menino: Orlando Silva, Sílvio Caldas, Nelson Gonçalves, Núbia Lafayette, Cauby Peixoto, tudo. Fez bem à minha alma, mas nada disso influenciou o trabalho que eu faço.

Minha influência é primal, agrestina, obra da cidade de São Bento do Una, onde eu nasci e onde minha família tocava, sem ser profissional. Ali dentro de casa se ouvia bandolim, violino, piano. Na cidade havia um cinema com um alto-falante para fora, que tocava todos esses artistas da minha juventude, e eu gostava mesmo de ir à casa de meu avô Adalberto, que ouvia música clássica de orquestra.

Vivi no meio da caatinga, ouvindo os aboiadores, o forró sendo tocado pelos violeiros daquela maneira tão natural. Aquilo entrou em mim; não precisei fazer pesquisa nenhuma. Eu ouvia tudo aquilo que influenciou Luiz Gonzaga; as matrizes de Gonzaga são as mesmas minhas. É a mesma raiz ancestral, atemporal.

Por exemplo, a música “Bicho Maluco Beleza”, que hoje é um hino de Carnaval, eu fiz depois de ver um rapaz artesão de Olinda —que fazia cover meu e de Raul Seixas— em um bloco chamado Urso Cascudo do Amparo. Ele estava lá vestido de Raul na frente do cortejo e eu pensei “pronto: é o Raul em um bicho maluco”. Fiz a música na hora.

As coisas foram acontecendo aos poucos. Nunca tive relação forte com empresas, sempre produzi os discos que eu queria, assim como fiz meu filme, “A Luneta do Tempo” (2014), também do jeito que eu quis, aprendendo tudo do zero.

Naquela época em que meu pai queria colocar uma banca de advocacia para mim, eu cheguei a cursar faculdade de direito —nesse tempo, com uns 19 anos, trabalhei até como repórter, no Jornal do Brasil. Uma vez eu estava na sucursal de lá quando vi que aconteceria, no Rio, o Festival Internacional da Canção.

Eu tinha acabado de fazer minha primeira composição, “Acalanto para Isabela”. Meu primo me deu um violão e eu fiz a música para a filha dele que acabara de nascer. No fim, a música não tinha muito a ver com a nenê, mas botei o nome dela. 

Inscrevi a canção no festival e fui cantar direto no Maracanãzinho, acompanhado de uma orquestra de cordas, na frente de um monte de artistas e gente de fora.

Mas o pulo real eu dei foi em São Paulo, já depois de gravar disco, no Festival Abertura do Theatro Municipal, quando apresentei a música “Vou Danado pra Catende” (1975). Aí pipocou. E hoje eu já sou responsável por músicas que estão no inconsciente coletivo pernambucano.


Alceu Valença é cantor e compositor.

Depoimento a Walter Porto.

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