Em conto surrealista, hiena se veste de menina debutante

Coletânea da escritora anglo-mexicana Leonora Carrington será lançada em 2020

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Leonora Carrington

[SOBRE O TEXTO] O conto nesta página fará parte de uma coletânea com dez histórias da escritora anglo-mexicana a ser publicada em 2020 pela Rafael Copetti Editor. O volume será organizado pela professora Nora Basurto, da Universidad Veracruzana, do México.

mulher-hiena de vestido longo
Ilustração - Venes Caitano

Quando eu era uma debutante, eu ia sempre ao jardim zoológico. Ia com tanta frequência que conhecia melhor os animais do que as moças da minha idade. Era mesmo para escapar do mundo que eu ia todo dia ao zoológico. O bicho que eu mais conhecia era uma hienazinha. Ela me conhecia também; ela era forte e inteligente, eu a ensinei francês e em contrapartida ela me ensinou a sua língua. Assim, passávamos muitas horas agradáveis.

No primeiro dia de maio, a minha mãe organizaria um baile em minha homenagem; durante noites inteiras eu sofri; sempre detestei bailes, principalmente aqueles em minha homenagem.

Na manhã de primeiro de maio de 1934, bem cedo, fiz uma visita à hiena. “Que chatice”, eu lhe disse, “tenho que ir ao meu próprio baile esta noite”. “Você tem sorte”, ela disse, “se fosse eu, ia adorar. Não sei dançar, mas pelo menos poderia conversar”. “Mas vai ter um monte de coisa para comer”, eu disse: “vi caminhões cheios de comida indo para casa”. “E você se queixa”, respondeu a hiena desgostosa: “Eu só como uma vez por dia, e só me dão porcarias!”

Tive uma ideia ousada, quase ri: “E só você ir no meu lugar”.

“A gente não é muito parecida, do contrário eu bem que iria”, disse a hiena um pouco triste. “Olhe só”, eu disse, “não se vê bem no crepúsculo; se você se esconder um pouco no meio da multidão ninguém vai notar. Além disso, a gente tem quase a mesma altura. Você é minha única amiga, eu te imploro”. Ela pensou a respeito, eu sabia que ela queria aceitar.

“Está bem”, ela disse subitamente.

Era bem cedo, não tinha muitos guardas por lá. Rapidamente, abri a jaula e em poucos instantes estávamos na rua. Peguei um táxi, e em casa todo mundo ainda estava deitado. No meu quarto, tirei o vestido que deveria usar à noite. Era um pouco comprido e a hiena caminhava mal com os meus sapatos de salto alto. Achei uma luva para disfarçar suas mãos bem peludas e para que se parecessem com as minhas. Quando o sol bateu no meu quarto ela deu várias voltas caminhando mais ou menos ereta. Nós estávamos tão ocupadas que minha mãe, que veio me dar bom-dia, quase abriu a porta antes que a hiena pudesse se esconder debaixo da minha cama. “Tem um cheiro ruim no seu quarto”, disse a minha mão abrindo a janela, “antes do fim de tarde você tomará um banho perfumado, com os meus novos sais”. – “Está bem”, eu disse. Ela não ficou muito tempo, acho que o cheiro estava forte demais para ela.

“Não se atrase para o café da manhã”, disse a minha mãe enquanto deixava o meu quarto.

A maior dificuldade seria encontrar um disfarce para a sua cara. Por horas a fio tentamos encontrar uma solução: ela rejeitava todas as minhas ideias. Por fim, ela disse: “Acho que tenho uma solução. Você tem uma criada?”.

“Sim”, eu lhe disse, perplexa.

“Então, é isso. Você chamará com o sino a criada e quando ela entrar a gente se joga em cima dela e lhe tira o rosto; usarei o rosto dela em vez do meu esta noite”.

“Não é prático”, eu disse. “Ela provavelmente morrerá quando não tiver mais rosto; alguém encontrará com certeza o cadáver e iremos as duas para a prisão”.

“Com a fome que estou, vou comê-la”, replicou a hiena.

“E os ossos?”.

“Isso também”, ela disse. “Então, entendeu?”.

“Só se me prometer que vai matá-la antes de arrancar-lhe o rosto, senão vai ser muito ruim para ela.”

“Bom, para mim tanto faz”.

Toquei o sino chamando Maria, a criada, com um certo nervosismo. Não o teria feito se não detestasse tanto os bailes. Quando Maria entrou, eu me virei para a parede a fim de não ver. Admito que tudo foi rápido. Um grito breve e fim. Enquanto a hiena comia, eu olhava pela janela.

Alguns minutos depois, ela disse: “Não consigo mais comer, ainda faltam os pés, mas se você tiver uma bolsinha eu os como mais tarde, ao longo do dia”.

“Você encontrará no armário uma bolsa bordada com lírios. Tire os lenços de dentro e pegue-a”. Ela fez como eu indiquei. Em seguida, ela disse: “Vire-se agora e veja como estou linda!”. Na frente do espelho, a hiena se admirava com o rosto de Maria. Ela comeu cuidadosamente tudo que estava ao redor do rosto a fim de que só restasse aquilo de que precisava. “É verdade, foi feito cuidadosamente”, eu disse. 

Perto do entardecer, quando a hiena estava toda arrumada, ela anunciou: “Me sinto muito bem. Tenho a impressão de que farei grande sucesso esta noite”.

Depois de ouvirmos por algum tempo a música lá embaixo, eu disse: “Vá lá agora e trate de não ficar perto da minha mãe: ela saberia certamente que não sou eu. Fora isso, eu não conheço ninguém”. Eu a beijei deixando-a partir, mas ela tinha um cheiro muito ruim. Caiu a noite. Cansada das emoções do dia, peguei um livro e, perto da janela aberta, me permiti descansar. Lembro-me que lia “As Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift. Mais ou menos uma hora depois a primeira desgraça se anunciou. Um morcego entrou pela janela dando gritinhos. Morro de medo de morcegos. Me escondi atrás de uma cadeira, batendo os dentes. Mal tinha me ajoelhado, quando o bater das asas foi abafado por um grande barulho à minha porta. Minha mãe entrou, furiosamente pálida: “Tínhamos acabado de sentar à mesa”, ela me disse, “quando a coisa que estava no teu lugar se levanta e grita: ‘Estou cheirando um pouco mal, hein? Bem, eu, eu não como bolos’. Nisso arrancou o rosto dela e o comeu. Um grande salto e ela desapareceu pela janela”.


Leonora Carrington (1917-2011) foi uma escritora e pintora inglesa surrealista radicada no México.

Tradução de Dirce Waltrick do Amarante, professora de artes cênicas na UFSC e autora de “Para Ler Finnegans Wake de James Joyce” (Iluminuras).

Ilustração de Venes Caitano, artista gráfico.

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