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Poesia brasileira ficou sisuda e hermética, diz pesquisadora

Poetas contemporâneos abandonaram tradição de humor e gracejo

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Não há dúvidas de que ficou mais difícil escrever poesia em português depois de Fernando Pessoa. Isso sabiam Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, que foram, por talento e por essa previdência, grandes poetas modernos. 

Os poetas contemporâneos brasileiros, por sua vez, contornaram esse problema deitando fora sua herança mais tardia, para encontrar sua gênese na poesia concreta e suas dissidências, além de reler os experimentalismos que aboliram o verso. 

A nova poesia brasileira é hermética, mas muito distante do velho simbolismo com seus abismos, suas flautas e seus vinhos. Um hermetismo muito a sério, nascido das pequeninas sensações do agora, da atenção a cenas ou cenários cotidianos atravessados por cores, ângulos e memórias que assinalam, muitas vezes, confusão e suscetibilidade. Nessa toada, está a poesia de Marília Garcia e a de Alice Sant’Anna.

A escritora posa para a foto; ela usa camisa estampada e, ao fundo, há uma parede toda laranja.
A escritora Julia Hansen em Paraty para apresentação na FLIP 2018. - Foto: Marcus Leoni / Folhapress

Além desse impressionismo, a produção poética contemporânea brasileira trabalha ainda com outra forma de seriedade —a da mensagem que protesta de um lugar determinado, não só pelo realismo da miséria e da violência, mas também pelas nuances de existências que têm, acima de tudo, etnia, credo e reivindicações. Nesse caso, engajada e moralizante, não tem qualquer hermetismo e se comporta dentro de uma linguagem denotativa, como na produção de Angélica Freitas.

Essas preferências fizeram da poesia brasileira ou uma tribuna cujo sentido é defender causas justas ou uma sensação doméstica tornada estranha, raramente cômica, que deseja democratizar o sublime. 
A poesia, agora, ou vai ao debate ou quer uma sinceridade enigmática, que se confessa por meio de um caráter nebuloso e difícil. O típico humor dos poetas brasileiros foi substituído por poéticas mais sóbrias. Note-se que esse tom não vem da tristeza, mas da vontade de dizer a verdade, nada além da verdade.
O cotidiano dos modernos, invadido por amores inesperados, abriga, agora, amores únicos ou plurais, transcritos numa linguagem repleta de mensagem ou pormenores íntimos, não raro acompanhados por palavras do estilo baixo, saídas dos quartos e dos muros para se tornarem extraordinárias.

Alguns poetas tateiam, às vezes, um humor que, quase sempre, é inocente e epidérmico, como os poemas “Dentadura” , da já citada Angélica, e “Doencinha”, de Sofia Mariutti. Tais gracejos vêm quase sempre de efeitos linguísticos e deslocamentos. No entanto, não descendem nem do humor direto de Paulo Leminski e nem do comovente de Bandeira. 

O ancestral jogo das palavras, o qual fazia a forma encarnar o conteúdo, foi trocado, sem saudade, por uma radicalização da estrutura. No mais das vezes, com ostensivos sinais gráficos que cruzam o poema ou com pontuações que não cuidam das normas gramaticais.

Do espólio da poesia concreta e suas sucessoras, ficou um gosto pela sonoridade mais espacial que causa uma espécie de atonalismo feito de pausas e vazios. Tais recursos estruturais também corroboram o peso e a gravidade dos contemporâneos, pois a ausência da periodicidade rítmica costuma tornar o tom mais sisudo.

Talvez pelo medo que a poesia tenha de não entrar no futuro, há uma tendência de redefini-la nos limites de outras linguagens. O ut pictura poesis —figura usada por Horácio, cuja tradução é “a poesia é como a pintura”— desapareceu como conceito retórico para reencarnar nas práticas interartísticas, que têm feito do poema não só uma coisa feita de palavras, mas também de imagens plásticas ou cênicas. Tais práticas põem em xeque o próprio conceito de poesia, e mesmo que os poetas as tratem com humor, não conseguem tornar a questão ligeira ou prosaica.

É com muita ousadia, vontade e esforço que os poetas contemporâneos têm dado tudo de si, produzindo, lendo-se uns aos outros e mesmo frequentando-se para conversar sobre seus ofícios. E deve ser com satisfação que se veem recompensados.

Nos últimos prêmios literários, ao menos os mais significativos, percebo uma poesia de cenho mais franzido, de um realismo fragmentado em impressões muito pessoais ou de um humor sem nós, que parece não ter encontrado seu timing.

No meio dessa seriedade, destaco a da poesia de Júlia de Carvalho Hansen, cujo caminho inspira confiança, sobretudo, por carregar a simplicidade e a erudição, sem qualquer choque ou descontrole.
A autora cria afetos numa honesta expressão contemporânea, a qual intercepta com os recursos que sempre definiram a poesia. Consciente da naturalidade e dos contornos do caráter que imprime, Hansen visita os velhos e bons temas, conduzindo-os com uma musicalidade sensível ao ritmo e ao timbre, dentro de um imaginário bastante variado e de comovente compreensão.

Registrado que não se pode mais ser amigo do rei nem namorar prostitutas bonitas, é importante dizer que a poesia não precisa rir ou chorar, ela só tem de suspender o banal, jogar o jogo, e contar das experiências e dos sonhos dos homens. 


Mariella Augusta Masagão é escritora e doutora em literatura portuguesa pela USP

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