Ração natureba e petisco gourmet levam pets à mesa do jantar

Embalagens sérias e itens como 'latte' orgânico refletem ansiedade contemporânea na relação com animais

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Joe Pinsker

Para captar sucintamente a estranheza do modo como os americanos alimentam seus animais de estimação, talvez não exista descrição melhor que “‘latte’ sabor abóbora para cachorro”. Se houver espaço para mais alguns qualificativos, “‘latte’ sabor abóbora para cachorro, produzido nos EUA com leite de cabras, sem ingredientes transgênicos” provavelmente será ainda mais evocativo.

Trata-se de um produto real, vendido por uma empresa real —“basta acrescentar água quente!”, diz o rótulo—, e não pareceria deslocado nas prateleiras de muitas seções de ração para pets, onde hoje em dia a probabilidade de encontrarmos rótulos que mencionam “carne de gado alimentado a pasto” e receitas “de alto teor proteico” é tão grande quanto em qualquer outra seção do supermercado.

Como indicam essas seções, as comidas para pets –especialmente as mais caras— se aproximam cada vez mais da comida humana, e os pontos em comum entre as duas categorias podem ser espantosos.

 

"As pessoas andam incluindo frutas vermelhas inteiras” na ração de seus animais de estimação, diz Don Tomala, presidente da Matrix Partners, empresa de branding de produtos para pets. “Estão incluindo ‘kelp’ [espécie de alga marinha], cúrcuma, vinagre de sidra de maçã... Todos esses ingredientes são tendências em alta na comida para humanos.”

Tomala, que na década de 1980 ajudou a lançar a marca de ração para cachorro Kibbles ‘n’ Bits, lembra que naquela época o produto era “comida para cachorro e só isso”. Os ingredientes não eram objeto de interesse especial, e as embalagens eram divertidas —ele se recorda de rótulos com aparência de cartum, por exemplo “com um cachorro sorridente com cara redonda”. É algo que não funcionaria hoje.

O executivo diz que hoje é mais provável que as embalagens mostrem “um cachorro com ar sério. A impressão é de um produto nutritivo e saudável —de algo que eu compraria numa loja de produtos naturais.”

Essa transformação reflete uma tendência crescente que leva as pessoas a fazer cada vez mais para satisfazer as necessidades humanas que elas projetam sobre seus bichos de estimação, quase como se fossem seus filhos.

Alguns americanos compram implantes testiculares de silicone para que seu pet possa “conservar sua autoestima e aparência natural” depois de ser castrado ou incluem seu bicho de estimação entre os beneficiários de suas heranças. Uma amiga me contou recentemente que, quando foi buscar uma receita nova, descobriu que o mesmo ansiolítico tinha sido prescrito para ela e seu cão.

 

Marqueteiros muitas vezes atribuem o fenômeno de pets serem tratados como pequenos humanos ao fato de membros da geração millennial estarem adiando o momento de ter filhos, de modo que podem canalizar sua energia para seus “bebês peludos”, um termo às vezes usado (lamentavelmente) para descrever animais de estimação. Tendo isso em vista, faz sentido que algumas pessoas queiram comprar os alimentos mais finos para seus pets.

Outra razão da popularidade crescente da comida de alta qualidade para animais é a preocupação cada vez maior de muitas pessoas com o impacto ambiental e social de tudo o que consomem.

“Uma das principais coisas que temos visto nos últimos cinco anos é que os ‘pais’ dos pets estão encarando a comida de seus animais de estimação como encaram a comida que compram para eles próprios”, comentou Steve Rogers, consultor principal da firma Clarkston Consulting, que assessora grandes empresas de alimentos e bebidas, muitas das quais possuem divisões de ração para pets.

Sem transgênicos, sem glúten, sem conservantes —é isso o que muitos consumidores procuram. E, diz Rogers, “qualquer tendência que se observa nas compras ou na comida dos consumidores se repete na ração de seus animais”.

É claro que essas tendências não se aplicam ao mercado inteiro das rações, mas a uma parcela importante e rapidamente crescente dele. Com base em pesquisas de mercado e conversas com clientes, Rogers estima que cerca de metade das pessoas que têmanimais de estimação são potenciais compradoras dessas variedades de ração mais cara, orgânica e produzida de modo ético.

E Tomala diz que a demanda pela ração de cachorro tradicional continua grande, só que “deixou de ser o maior impulsionador do setor: o crescimento está vindo dos produtos de padrão mais alto”, cujo quilo custa o dobro, ou até mais, dos convencionais.

O valor gasto pelos americanos com rações de pets passou de US$ 18 bilhões em 2009 para US$ 30 bilhões em 2017, um crescimento que ultrapassa de longe o aumento no número de animais de estimação dos americanos nesse período. Em outras palavras, as pessoas estão gastando mais com a comida de cada animal do que gastavam dez anos atrás.

 

Uma empresa que está se beneficiando com esse aumento é a Honest Kitchen, de San Diego, firma fundada em 2002 que produz os “lattes” sabor abóbora para cães, além de toda uma série de outros alimentos “humanos” para pets.

“Isso só quer dizer que os ingredientes vêm da cadeia de alimentação humana, são feitos em um local de produção de alimentos para humanos e obedecem às normas de produção de alimentos humanos”, em oposição às normas estaduais e federais que regem a produção de comida para animais, explicou a diretora de marketing da empresa, Carmen Velasquez.

A Honest Kitchen fabrica produtos desidratados que, segundo ela, com o acréscimo de água morna, “ficam com uma consistência semelhante à do mingau de aveia. Dá para identificar ‘cranberries’, pedacinhos de maçã e lascas de banana”.

“Realmente tiramos inspiração da cadeia de alimentação humana”, diz Velazquez, citando o “caldo instantâneo de osso” e a “gemada sazonal instantânea” da Honest Kitchen, que também vende carne seca para cães. Mike Steck, o diretor de marketing da companhia, comenta: “Temos que tomar cuidado. Parte do que temos que fazer com a marca é garantir que ela nunca possa ser confundida com comida para humanos.”

Dana Brooks é presidente do Pet Food Institute, uma associação comercial que representa produtores de comida voltada a animais, e também notou a humanização das rações. “A tendência que vemos é que a comida de nossos bichos de estimação fique mais parecida com nossa própria”, ela comenta.

Brooks menciona uma empresa chamada Freshpet, que, segundo sua própria descrição, produz “comida de verdade para animais, fresquinha da geladeira”. Explicando as vantagens da comida “de verdade”, ela disse: “Talvez você possa dar ao seu pet algo tão semelhante ao que você está comendo que a impressão é de estar dividindo sua refeição com ele”.

Ela me contou de uma visita que fez recentemente a uma unidade da Freshpet: “A visita me deixou com fome. O lugar cheirava a hambúrguer, cozido de carne e frango assado.”

A história da ração para animais como produto de consumo nem sempre foi tão apetitosa, como me disse Katherine C. Grier, historiadora da Universidade de Delaware e autora de “Pets in America: A History”. Ela me fez um apanhado da história da comida para pets, começando em meados da década de 1800, quando donas de casa preparavam um “cozido para cachorros”, feito de restos de carne, ossos, cartilagem ou vegetais misturados com batatas, arroz ou fubá.

A primeira ração industrializada chegou ao mercado americano na década de 1870, disse Grieg: uma firma britânica, a Spratt’s Patent Ltd., começou a vender biscoitos para cachorro que supostamente favoreceriam o desempenho de cães de caça e de exposição.

Com o tempo, a Spratt’s e outras companhias começaram a vender seus produtos para os proprietários de cachorros comuns. Mas o que realmente popularizou a ração para cães foi a comida enlatada, que começou a aparecer nas prateleiras por volta da década de 1910.

A primeira comida enlatada foi composta inteiramente de carne de cavalo –que humanos geralmente não comiam, mas sobrava depois que cavalos de carga velhos ou exauridos eram abatidos e transformados em sabão, fertilizante ou outros produtos. Após o sucesso da ração feita de carne de cavalo, algumas empresas de carne processada perceberam que podiam fazer uso dos resíduos animais de seus próprios processos e começaram a ingressar no mercado, também.

Ironicamente, foi durante a Grande Depressão que a comida enlatada realmente consolidou sua presença. Em tempos de vacas magras, as famílias compravam menos carne, e isso muitas vezes significava que sobravam menos restos para o animal de estimação da família. Por isso as pessoas começaram a recorrer à comida enlatada, que lhes permitia continuar a alimentar seus pets com proteínas a um custo mais baixo.

A carne de qualidade própria para consumo humano também escasseou durante a Segunda Guerra Mundial, e, segundo Grier, quando a guerra chegou a fim, as rações para animais de estimação ganharam sua seção própria nos supermercados.

Assim nasceu o mercado de rações que as pessoas hoje reconheceriam como tal. Embora elas em geral fossem adequadas em termos nutricionais, eram mais ou menos repulsivas. A carne de cavalo continuou a ser enlatada durante décadas após a guerra, mas desapareceu com o tempo. Mesmo hoje, as rações para pets podem incluir “cabeças, pés e vísceras” de frango, segundo uma organização independente que ajuda a definir os padrões seguidos pela indústria.

Quando, conversando com Brooks, do Pet Food Institute, descrevi alguns dos ingredientes das rações para animais como “desagradáveis”, ela respondeu: “A ressalva que eu faria é que eles podem ser desagradáveis a você, como consumidor humano... Mas eles fornecem os minerais e algumas vitaminas de que os animais de estimação precisam”. Ela destacou que há partes de animais que muitos americanos preferem não consumir, mas que “em outros países são vistos como iguarias”.

Os produtores de comida de alta qualidade para pets estão reagindo à ambivalência dos donos dos animais em relação a esses ingredientes. Eles também atendem àqueles que se preocupam com alimentos contaminados e com alergias a grãos (uma preocupação provavelmente exagerada).

Mas o tipo de produtos que alguns deles andam comprando –pense em carne seca— parecem pouco indicados para resolver as preocupações com a saúde. E elas confundem as distinções entre prazer humano e animal.

Essa diferença foi algo que discuti com a antropóloga Molly Mullin, que leciona na Universidade da Carolina do Norte e estuda as relações entre humanos e animais. “As pessoas precisam, em certa medida, ir inventando essas categorias”, ela disse. “Elas estão sempre repensando-as e modificando-as.”

A comida é apenas uma categoria que vem sendo modificada. E isso provavelmente é positivo: à medida que os alimentos de alta qualidade para pets vão ficando mais ecológicos e de produção mais ética, essas tendências também podem chegar ao grande mercado e afetar a alimentação dada à maioria dos animais de estimação nos Estados Unidos.

Mesmo assim, a contribuição para o bem maior parece ser modesta, dado que a maior parte da comida para pets consiste em simplesmente alimentar alguns animais com outros –sem falar que algumas pessoas pagam para mimar seus animais de estimação enquanto outras pessoas passam fome.

Além disso, quem sabe até que ponto um animal realmente aprecia caldo de osso que é próprio para consumo humano? Os humanos nem sempre são hábeis em interpretar as emoções dos cachorros: a expressão canina que as pessoas interpretam como um sorriso pode, na realidade, ser indicativa de medo ou preocupação.

Na maioria dos casos, a comida para pets está ficando mais semelhante à comida humana para que as pessoas —e não os animais— possam se sentir melhores.


Joe Pinsker é redator da revista The Atlantic, onde escreve sobre famílias e educação. 

Texto publicado originalmente na revista The Atlantic; tradução de Clara Allain.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.