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Uma música que traduzia desejos, por Arthur Nestrovski

Para diretor da Osesp, sinfonia de Luciano Berio parecia arte de outro planeta

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Arthur Nestrovski

Uma sinfonia, em duas cenas.

A primeira se passa em Porto Alegre, numa noite de sábado, na casa de meus avós maternos, por volta de 1973. Meu avô deixava o rádio sempre ligado na Rádio da Universidade, de música clássica. Todo sábado, a casa era ponto de encontro dos amigos, e eu adorava ir para lá. Nessa ocasião, devia ter uns 13 ou 14 anos.

Pouco antes de chegarem os convidados, eu estava sentado ao lado da lareira —começou a tocar uma música muito diferente, que eu jamais havia escutado, nem sabia que podia existir. À frente e por cima de uma textura tradicional de orquestra, sobrepunham-se citações de obras famosas (só algumas das quais eu reconhecia) e soavam vozes que mais falavam do que cantavam, embora também cantassem aqui e ali.

Tudo era ao mesmo tempo novíssimo e antigo. Uma arte de outro planeta, comparado ao que já ouvira; ao mesmo tempo, a mais completa tradução de meus próprios desejos, que mal começavam a se esboçar.

A segunda cena acontece 40 anos depois. Para ser preciso, na noite de 25 de outubro de 2013, no Royal Festival Hall de Londres, onde tocava a Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), regida por Marin Alsop, com The Swingle Singers como solistas. O concerto fazia parte do festival The Rest Is Noise, inspirado no livro best-seller de Alex Ross, “O Resto É Ruído”, uma história da música no século 20. 

À Osesp cabia a década de 1960, tendo como obra principal a “Sinfonia” de Luciano Berio, de 1968 —aquela mesma peça ouvida no rádio, décadas antes. 

A emoção de estar lá como diretor artístico da orquestra, que se apresentava pela primeira vez nesse teatro lendário, somava-se aos afetos pessoais de quem tinha estudado música na Inglaterra e voltava ao país pela primeira vez, descontadas duas brevíssimas visitas. 

Somava-se ainda à compreensão de um significado maior, associado à audição daquela obra em especial. Tinha a ver com muitas coisas, entre elas a vontade de me abrir para o mundo, de romper os limites da família, da cidade, do país. 

Erguido mais tarde a outro plano, era o mesmo esforço de abertura e de desprovincianização que, pensando em retrospecto, marcaria toda uma carreira de professor, editor, tradutor, crítico, músico e, finalmente, diretor de orquestra. 

Um arco pessoal se completava, sobre o qual se desenhava outro, uma vida inteira de produção, que agora vai ficando mais fácil de discernir, à beira dos 60 anos.

Tudo tem a ver. O que a “Sinfonia” de Berio dramatizava ali, inesquecivelmente, era algo que marca muitas das formas mais instigantes da nossa cultura: uma disposição de cruzar ou romper as fronteiras entre as disciplinas. Fronteiras que, de resto, não existem, senão pelas conveniências pedagógicas.

Deveria ser óbvio que o estudo da poesia não pode ser deixado de lado, por exemplo, quando se vai estudar uma canção; também não se pode deixar de lado a música quando se vai analisar uma letra, para ficar num caso análogo. Na prática, porém, uma e outra tendem a ser estudadas separadamente, contrariando a natureza do objeto.

Não há por que não se nutrir mutuamente das teorias desenvolvidas num e noutro campo —para além desses dois, aliás, e respondendo às necessidades de cada assunto. Cabe ressaltar que o pensamento brasileiro tem se mostrado bem disposto a aproveitar essas liberdades. Seja na teoria, seja na prática da música e da literatura, isso se mostra repetida e exemplarmente.

Basta pensar em Mário de Andrade. Ou, antes dele, em ninguém menos que Machado de Assis, que intuiu no nascedouro a potência da nossa música urbana moderna e escreveu alguns contos antológicos sobre músicos. Ou, indo para adiante, um Guimarães Rosa, que desvelou fundos segredos da arte da música em “O Recado do Morro” (“Corpo de Baile”) e “Sorôco, Sua Mãe, Sua Filha” (“Primeiras Estórias”).

E o que dizer da tradição extraordinária de poetas da canção? Tais cruzamentos de literatura e música não destoam de tantos outros na nossa cultura, em que a mistura tende a ser a prova dos nove, malgrado as resistências e o recalque.

Num outro contexto, o impacto daquela “Sinfonia” de Berio, em que se escutam trechos de Beckett e slogans revolucionários, cacos da cultura pop conjugados a citações eruditas, tudo sobre o tapete do scherzo da “Segunda Sinfonia” de Mahler —impacto premonitório para o adolescente, confirmativo na meia-idade—, ecoava uma dimensão que, por outros caminhos, ganha contornos muito próprios no Brasil e define uma visão de mundo. Tudo tem a ver. 


Arthur Nestrovski é diretor artístico da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo); este texto é uma versão modificada da apresentação de seu livro “Tudo Tem a Ver”, a ser publicado no segundo semestre pela Todavia.

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