Zizek é melhor que Jordan Peterson até para chutar cachorro morto

Escritor Francisco Bosco analisa debate entre filósofo esloveno e psicólogo canadense

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Francisco Bosco

[resumo] Autor analisa debate que colocou frente a frente um expoente do pensamento conservador, Jordan Peterson, e um dos principais filósofos contemporâneos, Slavoj Zizek, identificado com a esquerda. O "duelo do século", como foi apelidado o confronto, na verdade revela um "mal do século": o narcisismo como compulsão. Leia também o texto de João Pereira Coutinho sobre o encontro.

Nas semanas que antecederam o debate entre Jordan Peterson e Slavoj Zizek, comentou-se que os termos da conversa —Felicidade: Capitalismo x marxismo— eram inadequados. A crítica se revelaria acertada. Mas talvez ela tenha notado menos um erro do que um sintoma — ou até mesmo uma estratégia. Veremos.

Com a palavra inicial, Peterson dedicou seu tempo a uma dura leitura do "Manifesto Comunista". Considero seus pontos em geral pertinentes.

Ele começa refutando a perspectiva da luta econômica como motor da história. Os conflitos da humanidade seriam mais complexos que a dimensão econômica. Além disso, a hierarquia, a competição, a dominação, lembra o "lobster man", são princípios pré-históricos e mesmo pré-humanos; existem nos animais e até no nível dos organismos mais primários. Irrefutável, mas observar que o capitalismo não instaura a competição tampouco exime o sistema de ser criticado por um outro que postule a limitação, o controle desse princípio. É oportuno lembrar que geralmente a evocação do estatuto "natural" da dominação serve ao propósito da legitimação de um capitalismo darwinista. Com efeito, seu principal advogado, Herbert Spencer, é "o pai do evolucionismo como uma ideologia geral", como o definiu José Guilherme Merquior. Em outras palavras, a moral do capitalismo, como a da evolução —e justificada por esta— seria a sobrevivência dos mais aptos.

Ilustração de Carcarah mostra Jordan Peterson (esq.) e Slavoj Zizek
Ilustração de Carcarah mostra Jordan Peterson (esq.) e Slavoj Zizek - Carcarah

Peterson prossegue criticando o esquematismo radical do binarismo de classe marxista: burgueses versus proletários, esquema distante da complexidade social real e produtor de tenebrosas consequências.

Na leitura de Peterson, esse binarismo de classe se desenvolve em um plano moral, no qual o crivo entre bons e maus é definido pela inscrição nas respectivas classes sociais. Essa perspectiva de superioridade moral atribuída não a indivíduos concretos e específicos, mas a burgueses ou proletários é o que sustenta e legitima a ditadura do proletariado: os cidadãos de bem "avant la lettre" seriam incorruptíveis precisamente por serem proletários.

Outro ponto colocado é uma crítica à economia totalmente centralizada e sua promessa de hiperprodutividade, como se a mera expulsão da classe proprietária tradicional fosse instaurar na sociedade um mecanismo produtivo. Esse tópico, como se sabe, remete a toda a tradição do pensamento de direita, que desde Adam Smith entende que a economia de mercado e sua "mão invisível" é a melhor forma de orientar a relação entre oferta e demanda, fornecendo a única base confiável para o crescimento da produtividade. Nos termos de Hayek, "o liberalismo econômico é contrário à substituição da concorrência por métodos menos eficazes de coordenação dos esforços individuais".

A economia dirigida leva à crítica seguinte, que incide sobre a utopia da sociedade comunista, percebida por Perterson como homogeneizante, solapadora das singularidades individuais. Também esse ponto tem rica tradição no pensamento de direita. Sua formulação mais profunda talvez seja a de Robert Nozick (esse sim um verdadeiro ultraliberal), cuja proposta de sociedade utópica começa com o reconhecimento de que as pessoas são diferentes, e que a ideia de que haja "uma sociedade ideal para todos viverem parece inacreditável".

Peterson critica ainda a aposta de Marx e Engels na necessária autocontradição do capitalismo. O ponto é igualmente bem repisado pela tradição. Refere-se ao que Thomas Piketty chama de "princípio da acumulação infinita", segundo o qual "ou a taxa de rendimento do capital cairia continuamente (emperrando o motor da acumulação e fomentando conflitos violentos entre os donos do capital), ou a participação do capital na renda nacional cresceria indefinidamente (o que, mais cedo ou mais tarde, levaria a uma revolta dos trabalhadores)".

A aposta foi perdida, conforme se sabe, porque Marx, como os demais grandes economistas do século 19 (Malthus e Ricardo, por exemplo), era pessimista por sua condição histórica: a situação absolutamente aviltante dos trabalhadores em meados do 19 fez surgir tanto o "Manifesto Comunista" quanto "Germinal", de Émile Zola, e "Os Miseráveis", de Victor Hugo.

Em suma: Peterson critica com pertinência diversos esquematismos de Marx, ou mais exatamente do "Manifesto" — mas as suas críticas resultam elas mesmas um tanto esquemáticas, seja pelo objeto demasiadamente restrito (apenas o "Manifesto"), seja por elas serem demasiadamente conhecidas na tradição da direita, seja ainda por serem às vezes redutoras das formulações do "Manifesto", seja finalmente pelo fato de elas se dirigirem, quase sempre, a perspectivas que a esquerda pós-Marx igualmente repudia (como atestou o próprio Zizek ao declarar concordar em boa medida com elas).

É aqui que se revela acertada a desconfiança quanto aos termos do debate. Ao atacar o marxismo, Peterson se dedica ao exercício um tanto improdutivo de chutar cachorro morto. O marxismo, tal como apresentado em sua fala, só é defendido hoje por dinossauros da esquerda sem força política real em quase todo o mundo. Na verdade, o marxismo é hoje muito mais falado pela direita do que pela esquerda. A princípio pode parecer apenas uma paranoia bizarra, do tipo olavista, chamar governos sociais-democratas, como o do PT, de socialistas ou comunistas (é importante ressaltar que a esquerda também costuma caricaturar a direita, por exemplo tachando de neoliberal posições de centro-direita que se aproximam da social-democracia).

 

Mas há lógica na paranoia. Quem a decifra é o próprio Zizek. Ele começa por evocar uma passagem de Lacan sobre um hipotético marido ciumento. Mesmo se suas suspeitas forem todas reais, observa o psicanalista, seu ciúme permanecerá patológico, porque ele se tornou o fudamento de sua identidade. Zizek dirá o mesmo sobre a visão dos nazistas sobre os judeus: mesmo se suas acusações aos judeus fossem verdadeiras, o nazismo seguiria falso, pois os judeus são o bode expiatório necessário para a criação da ficção de uma sociedade harmoniosa e para preservar, pela via do inimigo externo, a sua ilusão de integridade. Ora, a comparação pode ser extensiva à obsessão da nova direita reacionária pelo marxismo (ou socialismo, ou comunismo): sua função é mascarar os conflitos constitutivos de sua própria perspectiva por meio dessa caricatura fácil de demonizar. É provável que a verdadeira estratégia em jogo seja atacar a possibilidade real da social democracia através do fantasma do socialismo.

Nessa passagem, como em toda a sua fala inicial, Zizek repõe o debate em termos mais produtivos. Ele não se ocupou com o cachorro morto —que, de resto, ele sabe chutar melhor que seu oponente. Ele se dedicou a pensar problemas reais. Em seu conhecido estilo errático-brilhante, criticou a China e sua combinação de autoritarismo político e economia de mercado; bateu duro nos neoconservadores ao lhes inverter uma de suas hipóteses fundamentais (o mundo não está em crise por causa da falta de Deus, mas porque a crença nele faz com que alguns se sintam legitimados para realizar atos terroristas); bateu ainda mais duro em certa conduta da esquerda, que transforma o potencial afirmativo do igualitarismo em ressentimento; abordou tudo por meio de uma perspectiva radicalmente psicanalítica, em que nada é o que aparenta ser (de quebra, demonstrou a força da psicanálise como instrumento de compreensão do mundo contemporâneo).

Os termos inadequados do debate fizeram-no perder tempo, mas a exposição inicial de Zizek repôs o registro mais produtivo e a partir daí também Peterson passou a abordar problemas reais, em vez de fantasmagóricos. Nesse mundo real, a suposta oposição profunda entre os debatedores deu lugar a posições mais nuançadas e até aproximadas. Distante do marxista radical que costumava dizer coisas provocativas e ambíguas como "deveríamos repetir Mao", o filósofo esloveno criticou o capitalismo, reivindicando sua autolimitação, mas situou portanto sua fala dentro do capitalismo, e não em um sistema alternativo. Peterson, por sua vez, falou em responsabilidade moral do indivíduo pela sociedade, distanciando-se de qualquer alinhamento com a direita radical.

Não deixa de ser sintomático que algumas pessoas tenham se decepcionado com o esvaziamento do antagonismo do debate. O editor da revista de análise política Current Affairs, por exemplo, declarou: "Isso não é de forma alguma um debate, porque esses homens são praticamente idênticos para mim".

Não foi por nada que o debate entre Jordan Peterson e Slavoj Zizek se espalhou na forma imaginária do seu slogan publicitário. O "duelo do século" é uma expressão que revela um "mal do século": o narcisismo como compulsão. Essa exortação imaginária (no sentido lacaniano do termo: espaço do narcisismo, da rivalidade, da agressividade) foi comprada por parte da plateia, que ridiculamente aplaudiu os títulos curriculares dos debatedores, e prosseguiu aplaudindo argumentos, reproduzindo a lógica da lacração característica das redes digitais.

Compreende-se que Zizek, depois de demonstrar enfado com esse comportamento, chegou a pedir explicitamente que ele fosse interrompido. As redes digitais transformaram a luta por reconhecimento em compulsão por reconhecimento. O modo como as pessoas se deixam cair na armadilha evidencia sua ignorância quanto à natureza ambígua do narcisismo: por um lado ele é necessário, pois estruturante; por outro, é frívolo, baixo, empobrecedor. O narcisismo está para o século 21 como o "culto ao corpo" esteve para o final do século 20: dedicar a vida a obter likes é tão servil quanto dedicá-la ao abdôme perfeito (a servilidade: curvar-se totalmente ao discurso do Mestre do seu tempo).

Mas é na dimensão política que o narcisismo contemporâneo tem causado os piores problemas. Entrincheiradas em suas bolhas identitárias, por sua vez fomentadas pelos algoritmos, as pessoas tendem a caricaturar a diferença, suprimindo quase ao ponto da anulação as possibilidades de denominadores comuns ou ao menos o reconhecimento da eventual pertinência dos argumentos do outro. A polarização decorrente é uma força centrífuga que empurra as perspectivas para os extremos. Isso resulta em má interpretação da realidade e impasses políticos paralisantes.


Francisco Bosco é ensaísta, autor de "A Vítima Tem Sempre Razão?" (Todavia).

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