Cocô humano vira tratamento contra infecções, obesidade e problemas mentais

Pesquisa sobre uso medicinal de fezes é vanguarda na biomedicina moderna

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[RESUMO] Com pesquisas sobre transferência de fezes, a ciência contemporânea encontra um modo de reequilibrar o organismo humano como habitat natural de bactérias que são destruídas indesejavelmente pela ampliação do uso de antibióticos.

Revoluções médicas costumam vir de lugares improváveis. O laser começou a ser estudado como mera curiosidade óptica e, no entanto, acabou virando ferramenta indispensável em cirurgias oftalmológicas e tratamentos estéticos (entre outras coisas). O bolor que cresceu acidentalmente numa cultura de bactérias de um hospital londrino nos anos 1920 levou à descoberta da penicilina e à Era dos Antibióticos, na qual ainda vivemos. E algumas das consequências nefastas dessa era talvez sejam sobrepujadas graças às maravilhas do cocô humano.

Ok, o termo técnico é “transplante de fezes” ou “transplante de microbiota fecal”, mas não dá para dourar muito a pílula: estamos falando de obter cocô de uma pessoa saudável para introduzi-lo (às vezes, pelo ânus) no organismo de pacientes —que podem estar sofrendo de diferentes doenças gastrointestinais ou mesmo com problemas que, à primeira vista, parecem não ter relação nenhuma com o trato digestivo.

Ao menos em certos casos, como os de infecções de difícil tratamento por meios convencionais, funciona que é uma beleza.

Funciona tão bem, aliás, que já existem debates regulatórios sobre como classificar esse tipo de terapia nos Estados Unidos —empresas de biotecnologia buscam meios de patentear seus próprios coquetéis fecais, como se eles fossem novas drogas, enquanto bancos públicos de fezes argumentam que o processo é similar ao transplante de órgãos. Isso, portanto, impediria que o material transplantado fosse, ele próprio, objeto de propriedade intelectual.

O admirável mundo novo da transferência de fezes, ademais, é só a ponta de lança de uma transformação conceitual muito relevante na biomedicina moderna, apesar do imaginário algo medieval e escatológico que cerca a ideia.

cocô de pelúcia verde
Imagem de capa da Ilustríssima sobre uso medicinal de fezes - Gabriel Cabral/Folhapress

Essa mudança conceitual está ligada à percepção de que organismos como nós são bem mais do que a simples soma de células que carregam DNA humano e de um único indivíduo. Faz mais sentido pensar no meu e no seu corpo como ecossistemas tão complexos quanto uma floresta tropical (ainda que, é claro, em escala muito menor).

É a interação entre tecidos e órgãos humanos, de um lado, e uma miríade de pequenas criaturas parasitárias, comensais e simbióticas, de outro, que leva ao surgimento de um organismo —ou melhor, superorganismo— funcional e relativamente harmônico. 

Eis o corolário desse raciocínio: muitas vezes, não adianta tratar apenas o indivíduo Homo sapiens; é preciso tratar o ecossistema em miniatura como um todo. E, para isso, vale a pena tentar abordagens pouco convencionais e um tanto asquerosas.

Paradoxalmente, porém, essa percepção só começou a ganhar corpo graças aos efeitos da abordagem nada holística que a Era dos Antibióticos trouxe para o tratamento de infecções bacterianas.

Seria, é claro, uma injustiça histórica tremenda condenar essas drogas. Estimativas falam em centenas de milhões de vidas salvas apenas graças à penicilina. Mas, muitos desses medicamentos, quando comparados a exércitos antibacterianos, são do tipo que atira primeiro e nem chega a perguntar depois, matando de modo indiscriminado tanto o exército inimigo (as bactérias causadoras de doenças) quanto civis ou funcionários da Cruz Vermelha (os micróbios inócuos ou mesmo benéficos que também compõem o ecossistema interno do organismo humano).

Só esse fato já seria suficiente para criar problemas, mas é preciso considerar ainda o papel dos antibióticos como poderosos motores da seleção natural, o processo chave da evolução dos seres vivos.

Bactérias são capazes de se reproduzir a velocidades estonteantes, produzindo cópias de seu DNA e gerando células-filhas. Essas descendentes invariavelmente carregarão erros de cópia em seu material genético, o que corresponde à possibilidade de apresentarem características diferentes de suas genitoras —tais como, digamos, resistência natural a antibióticos.

De quebra, ainda que as células bacterianas não façam sexo como os vertebrados, elas conseguem trocar material genético entre si de quando em quando —cruzando, inclusive, a barreira entre espécies (imagine um flamingo copulando com uma rã, a qual acaba desenvolvendo, pouco depois, um bico recurvo similar ao da ave, e você terá alguma ideia do grau de promiscuidade genética desses micro-organismos).

Isso significa que a resistência a antibióticos pode se espalhar com rapidez alarmante entre populações de micróbios por meio do “sexo” bacteriano.

Mesmo que esse tipo de troca de genes demore a acontecer, porém, a matança generalizada produzida pelos antibióticos —em especial se usados de forma descuidada— tende a deixar vivos no organismo uns poucos exemplares de bactérias resistentes, naturalmente (ou artificialmente, dá no mesmo) selecionadas para se multiplicar de novo assim que o organismo lhes oferecer uma brecha. E, na vez seguinte, sem que o ataque medicamentoso chegue a fazer cócegas nelas.

Tudo isso acaba produzindo, na plenitude do tempo, o que hoje chamamos de superbactérias —vilões microbianos resistentes a múltiplas classes de antibióticos (ou seja, remédios com diferentes mecanismos de ataque a micróbios em nível molecular).

É o caso de certas cepas (variantes ou “raças”) do bacilo Clostridium difficile. (Ele não ganhou esse sobrenome latino por ser difícil de matar, mas pela dificuldade inicial de cultivá-lo em laboratório.) 

Tal como muitas outras superbactérias, a criatura adora hospitais, basicamente porque são ambientes nos quais antibióticos são empregados à farta, para evitar que pacientes operados sofram com infecções oportunistas em seus cortes, por exemplo. É transmitida das fezes para a boca, em geral por contato do paciente com objetos e mobiliário do hospital.

O C. difficile produz diarreia (mais de três evacuações aquosas por dia), dor abdominal e febre. Em situações mais graves, as toxinas que o micróbio injeta no organismo, capazes de destruir as células da superfície do intestino, desencadeiam o que os médicos chamam de megacólon tóxico (um inchaço muito grande do cólon, região do intestino grosso) e podem acabar perfurando o órgão. 

Cerca de 30 mil americanos morrem anualmente como consequência desse processo —não há dados similares sobre o Brasil, em parte porque testes para detecção específica da bactéria raramente são realizados por aqui.

Mesmo quando não leva à morte do paciente, a infecção é um pesadelo por ser recorrente: os antibióticos parecem fazer algum efeito no começo, mas a diarreia continua voltando. E é aí que o cocô alheio se apresentou como possível redentor.

Convém lembrar que, embora testes científicos sistemáticos da abordagem só tenham se acumulado ao longo da última década, ela também tem algo de ancestral. Textos chineses do século 17 recomendam a ingestão do chamado “xarope dourado” ou da “sopa amarela” (nomes que, eu sei, parecem saídos de um esquete de Monty Python) para tratar diarreia e problemas abdominais. A matéria fecal era diluída em água e engolida. No começo deste século, beduínos recomendavam a ingestão de fezes frescas de camelo para tratar disenteria.

Os métodos que estão sendo testados e aprovados hoje não exigem um estômago tão forte. Pode-se, por exemplo, usar colonoscopia ou endoscopia para fazer a matéria fecal de pessoas saudáveis chegar ao intestino de quem não consegue se livrar do C. difficile

Outras opções são as chamadas sondas nasogástricas (que entram pelo nariz), o enema (injeção de fluido pelo ânus, sem necessidade de anestesia) ou mesmo a ingestão de cápsulas de gelatina, preparadas de forma a não carregar o cheiro e o gosto da matéria-prima. Também é importante diluir, homogeneizar e filtrar as amostras antes da aplicação.

Diversas sociedades médicas mundo afora já recomendam a abordagem para tratar pacientes que passaram por rodadas dos antibióticos normalmente usados contra a bactéria e acabaram sofrendo com novas infecções de C. difficile. A taxa de sucesso do transplante costuma ser bastante alta nesses casos, variando entre 80% e 90%.

“Existem poucos relatos de complicações inerentes ao procedimento, mas acredito que a pouca utilização do transplante esteja relacionada ao desconhecimento da técnica e à falta de protocolos institucionais que garantam a segurança do procedimento”, diz o médico Bruno Amantini Messias, do Serviço de Cirurgia do Hospital Geral de Carapicuíba e autor de um artigo sobre o tema no periódico Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões. 

“Não há nenhuma regulamentação sanitária nacional que aborde especificamente esse tipo de procedimento”, afirmou, em nota enviada à Folha, a assessoria de imprensa da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Tudo indica que o jeito correto de entender o sucesso da abordagem é pensar em termos ecológicos. Considera-se que os pacientes que sofrem com as cepas virulentas do C. difficile têm um quadro de disbiose, ou seja, de profundo desequilíbrio na presença de espécies microbianas em seu intestino.

Em outras palavras, se o trato intestinal dessas pessoas fosse uma floresta, poderíamos imaginar que todos os predadores foram dizimados pela caça desenfreada, de forma que só sobraram os herbívoros.

Removida a pressão dos bichos que antes os devoravam, tais comedores de plantas se multiplicaram tanto que roeram cada folha, flor e caule da mata, descaracterizando completamente o ambiente e colocando a própria existência dele em perigo. É mais ou menos o que aconteceu —só que em escala bacteriana, claro.

O transplante de matéria fecal devolve ao intestino dos doentes uma comunidade de espécies microbianas mais próxima da diversidade normal.

“Próxima”, vale dizer, porque análises feitas um ano depois do transplante sugerem que a diversidade de espécies da flora intestinal dos pacientes ainda é inferior à de pessoas sadias —mas, o que é muito importante, ainda assim é superior à que existia no organismo deles antes do tratamento. Além disso, a nova biodiversidade do intestino dos pacientes agora conta com micróbios que produzem substâncias capazes de proteger a mucosa do órgão contra danos e contra a colonização pelo vilanesco C. difficile.

Se funcionou no caso das infecções recorrentes, por que não funcionaria para outros problemas que envolvem o intestino? Com efeito, essa pergunta tem sido feita de maneira recorrente na literatura médica ao longo dos últimos anos, e os resultados têm sido animadores, ainda que nem de longe mágicos.

Só entre 2016 e 2019, por exemplo, é possível encontrar abordagens experimentais (em geral, usando animais de laboratório, mas também voluntários humanos) em que o transplante fecal ajudou a mitigar problemas como constipação crônica (que parece estar associada à famigerada disbiose, segundo um estudo feito na China), envenenamento alimentar por arsênico e mesmo o controle da obesidade.

Nesse último caso, a lógica da abordagem deriva do fato de que diferentes composições do ecossistema bacteriano intestinal alteram a maneira como as pessoas absorvem os nutrientes. Certos micróbios “parceiros” contribuem para a absorção desta ou daquela substância, o que acaba tendo efeitos importantes sobre o ganho de peso de seus hospedeiros humanos.

É claro que existe aí um caso clássico do tipo ovo-ou-galinha: será que uma dieta engordativa faz com que prosperem as espécies de micróbios que favorecem o surgimento da obesidade ou é a aquisição inicial desse tipo de micro-organismo que empurra o indivíduo na direção do sobrepeso?

O que realmente acontece não está claro, embora alguns experimentos tenham sugerido que receber o transplante de uma microbiota “magra” pode desencadear a perda de peso. Outro fator que deve ser levado em conta é o fato de que alguns membros das comunidades microbianas favorecem processos inflamatórios no organismo, enquanto outros amenizam tais processos —e a obesidade e os problemas de saúde relacionados a ela parecem estar relacionados à inflamação.

Além das possibilidades citadas acima, não é inconcebível que transplantes de microbiota fecal se tornem uma opção para o tratamento de problemas do sistema nervoso. De fato, existem interações complexas entre terminações nervosas intestinais —sujeitas à influência das bactérias do sistema digestivo, portanto— e o cérebro. É possível, portanto, que mudanças drásticas na microbiota influenciem o funcionamento cerebral.

Um estudo liderado por Rosa Krajmalnik-Brown, da Universidade do Estado do Arizona (EUA), trouxe evidências favoráveis a essa possibilidade estudando um grupo de 18 crianças com sintomas de autismo. A flora intestinal desses pacientes foi “zerada” com a ajuda de antibióticos e outros procedimentos; depois, eles receberam transplantes fecais e foram acompanhados por dois anos.

Tanto os sintomas gastrointestinais de que essas crianças sofriam (algo que acompanha com frequência o espectro do autismo) quanto os comportamentais tiveram melhoras duradouras nesse período. Os dados foram publicados neste ano na revista especializada Scientific Reports e, para a equipe americana, indicam que vale a pena apostar em estudos maiores e mais sistemáticos sobre o tema.

“De maneira mais global, minha visão é que o transplante de fezes é um tratamento transicional”, analisa Harry Sokol, do Departamento de Gastroenterologia do Hospital Saint-Antoine, em Paris. “Todos esses estudos são muito importantes para identificar os componentes terapêuticos —bactérias, outros micro-organismos, metabólitos [moléculas produzidas por esses micróbios]— presentes nas fezes, e eles é que serão desenvolvidos, a seguir, como candidatos a drogas mais simples e mais controladas.”

É justamente sobre isso que a FDA, agência que regula alimentos e fármacos nos EUA, deve se pronunciar em breve. Os favoráveis a tratar os transplantes como um tipo de droga argumentam, tal como Sokol, que essa abordagem vai tornar os testes clínicos da abordagem mais confiáveis, mais seguros e, no futuro, menos dependentes do simples procedimento de tirar cocô de uma pessoa e colocá-lo no organismo de outra. 

Há, porém, o temor de que o patenteamento de tratamentos específicos transforme-os em algo mais burocrático e, principalmente, mais caro, favorecendo as empresas que estão investindo na área, mas não necessariamente os pacientes.

Enquanto a decisão da FDA não sai, porém, as experiências que já existem envolvendo um outro tipo nada convencional de tratamento sugerem que a criação de medicamentos patenteados não é o único caminho. Em vez de usar fezes, alguns pacientes se infectam com pequenos vermes normalmente eliminados... pela evacuação.

É o caso do psicólogo brasileiro Adriano Facioli, que sofreu durante 25 anos com uma diarreia crônica e, a partir de 2012, passou a adquirir, de empresas britânicas, kits com larvas microscópicas do verme Necator americanus, mais conhecido entre nós como o causador do amarelão. “Foi a melhor coisa que eu fiz na vida”, diz Facioli.

No caso da infestação moderada do organismo com o verme, a lógica é similar ao que se vê no caso da microbiota intestinal. A ideia é que a presença da espécie no organismo ajude a modular o ecossistema interno do indivíduo.

Há ainda a intenção de minimizar problemas autoimunes (nos quais os sistemas de defesa do organismo se voltam contra ele próprio). Existem indícios de que a perda da convivência dos membros de sociedades industrializadas com parasitas como o N. americanus tenha causado um desequilíbrio no sistema de defesa do organismo, levando ao aumento de doenças autoimunes como a asma, os diferentes tipos de alergia e mesmo o diabetes.

Os vermes chegam em tubinhos de um centímetro de comprimento e adentram pela pele o organismo de seu hospedeiro. Depois disso, viajam pela corrente sanguínea, passam pelo pulmão e, na fase adulta, fixam-se no intestino.

“O efeito sobre a diarreia, um mês após a infestação, é impressionante. Houve um restabelecimento da consistência fecal e eu pude voltar a comer coisas que me atrapalhavam muito, como sorvete com lactose, cachorro-quente, pizza, sem maiores consequências”, conta Facioli, que se reinfesta a cada seis meses, em média. “Eu me sinto muitíssimo bem. Passamos mais de 200 mil anos, como espécie, tendo naturalmente esses vermes no bucho; eles têm um processo longo de coevolução conosco.”


Reinaldo José Lopes é jornalista de ciência da Folha e autor de oito livros, sendo o mais recente “Darwin sem Frescura” (HarperCollins Brasil).

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