Estado laico de hoje está mais atento ao pluralismo religioso

Declínio católico e ascensão dos evangélicos e dos sem religião mudou disputa em torno da laicidade

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Paula Montero Ronaldo de Almeida

[RESUMO]  O artigo apresenta o tema da mesa 6 ("Religião, política e espaço público") do seminário de 50 anos do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) .

A laicidade do Estado brasileiro comemora mais de um século de vigência constitucional. No entanto, nunca pareceu tão controversa quanto nas últimas décadas, quando setores da sociedade civil passaram a reivindicar o respeito às diferenças de crenças e à liberdade religiosa, o que para muitos implicou também poder atuar no Estado e através dele. Como advertem diferentes lideranças religiosas: “O Estado é laico, mas a sociedade é religiosa”. 

A Constituição republicana reconheceu, desde a sua primeira edição, em 1891, a liberdade de culto e interditou o Estado de interferir nas religiões. Naquele momento tratava-se praticamente de garantir a autonomia civil do catolicismo e garantir a liberdade de culto dos protestantes. Mas, por outro lado, algumas manifestações religiosas não cristãs foram consideradas falsas e condenadas pelo Estado como charlatanismo e superstição. 

Foi a partir dos anos 1960, com acentuada aceleração nos anos 1980, que os censos demográficos registraram uma crescente diversidade de religiões, predominantemente de cunho cristão, fruto de pelo menos três grandes movimentos: o declínio católico, a ascensão dos evangélicos (sobretudo dos pentecostais) e o crescimento da desfiliação religiosa (os sem religião, o que não significa, para muitos casos, ausência de religiosidade).

A Constituição de 1988 inovou relativamente pouco na garantia da laicidade, restringindo-se ao já previsto nas anteriores. Mas suprimiu do artigo relativo à proteção da livre manifestação exterior da crença as referências à “ordem pública” e aos “bons costumes” como limites ao exercício do culto.

A mudança expressa o entendimento construído ao longo da primeira metade do século 20 com relação às práticas espíritas e afro-brasileiras, que passaram a ser aceitas como atividades inequivocamente religiosas e dotadas de direito pleno de expressão pública. 

No entanto, de forma aparentemente paradoxal, quando o pluralismo religioso e seus direitos foram reconhecidos, a disputa em torno da laicidade se exacerbou. A concorrência entre crenças e a incorporação da ideia de livre manifestação de opiniões como direito individual multiplicaram as divergências em relação às práticas que podem ou não ser consideradas aceitáveis por um Estado laico.

Por exemplo, parcelas significativas dos evangélicos entraram na disputa pelo controle da moralidade pública na regulação dos corpos, dos comportamentos e dos vínculos familiares. Não se trata aqui apenas de reivindicar a proteção estatal da moralidade dos evangélicos, mas de inscrevê-la ou de mantê-la inscrita no ordenamento legal do país. 

Acrescente-se: a forte pressão por mudanças legais e comportamentais no campo da família e da sexualidade não advêm só de um tradicionalismo resistente ao mundo em mudança, como poderia ser o caso de setores da Igreja Católica. Esse conservadorismo tradicional reativo foi revigorado por uma postura ativa e propositiva de mudança cultural por parte dos evangélicos pentecostais.

A Igreja Católica, por sua vez, pretende manter sua influência nos patamares mais profundos da estruturação do espaço social, das relações sociais e dos sistemas de ordenamento jurídico-político. No entanto, ao perder sua posição hegemônica, ela não pode mais exercê-la como se falasse em nome da nação brasileira. Na atual conjuntura de pluralidade, vê-se obrigada a afirmar sua diferença e apresentar-se como um ator religioso entre outros.

Se as teorias clássicas da secularização previam um distanciamento do religioso em relação à vida política e sua contenção na vida privada, já há alguns anos o problema da secularização passou a ser como lidar com a atuação das religiões no espaço público, redefinir os parâmetros para circunscrever o secular e requalificar os limites do que pode ser aceito como religioso.

A título de ilustração, em 2013, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania aprovou a admissibilidade da proposta de emenda constitucional do deputado goiano João Campos (então no PSDB), que inclui entidades religiosas de âmbito nacional entre aquelas que podem propor Ação Direta de Inconstitucionalidade, iniciativa até hoje restrita apenas às entidades políticas e sindicais.

Para este caso, vale outra advertência bastante recorrente entre os atores políticos-religiosos: “O Estado é laico, mas não é ateu”.

Não pretendemos estabelecer aqui qual lugar cabe às religiões no espaço público nem deliberar de antemão sobre a legitimidade dessa presença. No entanto, pode-se afirmar que a articulação entre o secular e o religioso, tal como ele se constitui no Brasil contemporâneo, deslocou-se de uma concepção de laicidade que tinha como referência de religião o cristianismo católico para uma laicidade orientada pela pluralidade religiosa, que embora ainda seja predominantemente cristã assume cada vez mais um perfil evangélico.


Paula Montero é antropóloga e pesquisadora do Cebrap. Ronaldo de Almeida é antropólogo, professor da Unicamp e pesquisador do Cebrap. Aqui apresentam o tema da Mesa 6 do seminário de 50 anos do Cebrap.

Seminário sobre democracia celebra 50 anos do Cebrap 

Fundado em 3 de maio de 1969, o Cebrap promove o seminário internacional Democracia à Brasileira para comemorar suas cinco décadas de atividade. Pesquisadores renomados que passaram ou ainda integram o instituto  discutirão as turbulências políticas atuais. Os debates ocorrerão no auditório do Sesc Vila Mariana (r. Pelotas, 141). Inscrições podem ser realizadas pelo site do Sesc. Ingressos custam de R$ 9 a R$ 30. 

14.mai (terça)
 

19h - Abertura
Danilo Miranda (diretor do Sesc-SP) e Angela Alonso (presidente do Cebrap)

19h20 - Vídeo Cebrap – 50 anos pensando o Brasil

19h45 - Mesa 1 - Democracia em crise?
Mediação: Maria Hermínia Tavares de Almeida (Cebrap/USP)
Conferencista: Adam Przeworski (NYU)

15.mai (quarta)
 

10h -Mesa 2 - Instituições políticas brasileiras
Mediação: Miriam Dolhnikoff (Cebrap/USP)
Debatedores: Fernando Limongi (Cebrap/USP/FGV), Argelina Figueiredo (Cebrap/IESP) e Maria Hermínia Tavares de Almeida (Cebrap/USP)

14h - Mesa 3 - Mobilizações sociais
Mediação: Arilson Favareto (Cebrap/UFABC)
Debatedores: Daniel Cefaï (EHESS), Angela Alonso (Cebrap/USP) e Adrian Lavalle (Cebrap/USP)

16h30 - Mesa 4 - Desenvolvimento, trabalho e políticas públicas
Mediação: Carlos Torres Freire (Cebrap)
Debatedores: Elisabeth Reynolds (MIT), Glauco Arbix (Cebrap/USP) e Alvaro Comin (Cebrap/USP)

16.mai (quinta)
 

10h - Mesa 5 - Desigualdades
Mediação: Marcia Lima (Cebrap/USP)
Debatedores: Pablo Beramendi (Duke University), Marta Arretche (Cebrap/USP) e Marcelo Medeiros (Ipea)

14h - Mesa 6 - Religião, política e espaço público
Mediação: Mauricio Fiore (Cebrap)
Debatedores: Juan Vaggione (Conicet), Paula Montero (Cebrap/USP) e Ronaldo Almeida (Cebrap/Unicamp)

16h30 - Mesa 7 - Debates políticos do espaço público
Mediação: Marta Machado (Cebrap/FGV)
Debatedores: Magali Bessone (Paris I), Marcos Nobre (Cebrap/Unicamp) e Sergio Costa (Cebrap/Universidade Livre de Berlim/Mecila

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