Ideologia deixa buracos factuais descobertos, afirma professora

Cientista política Marta Arretche analisa como disputa ideológica turva percepção dos fatos

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Marta Arretche

[RESUMO]  Texto apresenta o tema da mesa 5 ("Desigualdades") do seminário de 50 anos do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

A ideologia não afeta apenas julgamentos morais sobre fatos. Afeta a percepção sobre o que verdadeiramente ocorreu. É ilusória a expectativa de que indivíduos bem informados partilhem a mesma versão sobre um mesmo fato.

Se forem politicamente engajados em ideologias opostas, terão versões diferentes sobre as causas, a extensão e as implicações de um mesmo e único fenômeno. Os fatos são objeto de disputa ideológica. 

Descrição familiar do ambiente político que vimos experimentando no Brasil, a conclusão resulta de estudo feito por Larry Bartels, professor da Universidade Vanderbilt (EUA), no livro “Unequal Democracy” (democracia desigual). Baseado em pesada artilharia de dados, Bartels mostra, por exemplo, que 70% dos conservadores mais bem informados atribuem o crescimento da desigualdade nos EUA à falta de disposição para o trabalho, ao passo que, entre os progressistas, essa taxa é de apenas 15%. 

 
As divergências ideológicas não param aí: quanto maior o engajamento político, maior a distância entre conservadores e progressistas quanto ao reconhecimento da existência mesma da desigualdade. Republicanos engajados se eximem de condenar moralmente seu crescimento nas últimas décadas. Simplesmente negam que o fato tenha ocorrido.

Portanto, para desalento dos racionalistas, Bartels não faria coro à expectativa de que argumentos logicamente elaborados, baseados em evidências solidamente construídas, possam convencer pessoas cuja ideologia as predispõe a distorcer ou negar fatos. Não parecem estar errados aqueles que suspenderam amizades no Facebook por razões exclusivamente ideológicas. Seria inútil continuar debatendo.

Isso significa que não há lugar para evidências no debate político? A resposta seria positiva se a disposição para negar os fatos fosse majoritária entre os eleitores. Não há registro de que isso ocorra. Pelo contrário. Ainda que esparsas, as informações disponíveis sugerem que a predisposição para dispensar evidências é minoritária.

Mais que isso: os estudos em ciência política apresentam muitos exemplos do efeito direto da opinião pública sobre o desenho final das políticas públicas. Não é verdade que a “vontade do povo” se manifesta uma única vez nas eleições, ocasião em que os eleitores entregam um cheque em branco aos governantes, que será cobrado apenas no final de seu mandato. 

Pelo contrário, opiniões formadas a propósito de temas salientes afetam a tomada de decisões. Se assim é, a produção de evidências confiáveis passa a ser altamente relevante. 

Ilustração para Ilustríssima
Ilustração - Daniel Bueno

Vejamos, por exemplo, a trajetória do Benefício de Prestação Continuada. Trata-se da garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. Diferentemente das aposentadorias, o beneficiário do BPC não precisa ter feito contribuições ao sistema previdenciário. 

Alvo sistemático das propostas de reforma, o BPC é visto como uma espécie de “quermesse de escola”, na qual todo mundo pode entrar. Não é! Implantado em 1996, 20 anos depois, em 2016, contava com pouco mais de 2 milhões de beneficiários idosos. No mesmo ano, os beneficiários do INSS eram 34,5 milhões. 

Embora pequeno em escala, o BPC tem operado, juntamente com o programa Bolsa Família, como um colchão amortecedor da crise econômica. Dados da Pnad Contínua revelam que o desemprego e a queda no valor real dos salários reduziram os ganhos via mercado de trabalho para todos os estratos de renda da população brasileira. 

Entre os 5% mais pobres, esta perda foi ainda mais aguda. Em apenas um ano, de 2016 a 2017, os valores desta fonte de renda caíram pela metade. O Bolsa Família e os benefícios vinculados ao salário mínimo, por sua vez, tiveram seus valores reais preservados. Como resultado, sua participação no orçamento das famílias mais pobres aumentou. 

No interior das famílias, BPC e o programa Bolsa Família operaram no sentido de compensar as perdas do mercado de trabalho. Os níveis de pobreza seriam ainda maiores na ausência do programa e da vinculação do BPC ao salário mínimo.

A reforma do ministro Paulo Guedes propõe que os pobres poderiam antecipar o direito ao BPC aos 60 anos. Portanto, cinco anos antes da regra atual. A antecipação, contudo, teria um preço: ganhariam metade do valor de um salário mínimo. A segunda contrapartida seria somente passar a receber o valor de um salário mínimo aos 70 anos.

Estudo divulgado em fevereiro pela Instituição Fiscal Independente, ligada ao Senado Federal, mostra que a economia a ser obtida com esse item da reforma seria de apenas R$ 28,7 bilhões em dez anos. Uma ninharia quando comparada ao efeito fiscal estimado pelo ministro para o conjunto da proposta de reforma, que é da ordem de R$ 1 trilhão. 

Ninguém ganha com a proposta. O governo não ganha recursos, dado seu pífio impacto fiscal. Os pobres não ganham, pois apenas um pequeno número de idosos receberia um pouquinho mais que o Bolsa Família para então esperar dez anos e, se ainda vivo, obter um benefício equivalente a um salário mínimo.

O Congresso, por sua vez, ganhou uma oportunidade de melhorar sua imagem diante do eleitor. Pesquisa da Oxfam, realizada pelo Datafolha de 12 a 18 de fevereiro deste ano, revela que 69% dos entrevistados concordam totalmente com a afirmação de que “é obrigação do governo diminuir a diferença entre as pessoas muito ricas e as pessoas muito pobres”. Se incluídos os que concordam parcialmente com a afirmação, a taxa sobe para 86% dos entrevistados. 

Ainda que o BPC alcance apenas 2 milhões de eleitores, não aprovar sua mudança oferecerá aos parlamentares a chance de demonstrar seu alinhamento com as preferências da maioria do eleitorado, independentemente de sua cor partidária. Em um contexto no qual a elite política tem como prioridade zero aumentar sua credibilidade, a oportunidade certamente não seria desperdiçada. 

Por que, então, o governo arcou com o ônus de apresentar uma proposta que não lhe rende nem benefícios fiscais nem benefícios políticos, tampouco reduz a desigualdade, além de oferecer de bandeja uma oportunidade para que a velha política protagonize uma bondade? Há quem diga que o BPC era o bode na sala. Na verdade, um bodinho bem pequenininho, à luz das evidências.

Razões ideológicas —e não os fatos— informaram essa escolha da equipe do ministro Guedes. Seus integrantes simplesmente não acreditam que seja justo que dois indivíduos recebam o mesmo benefício de um salário mínimo se um fez contribuições ao sistema previdenciário e outro, não. 

O BPC produziria incentivos perversos para os mais pobres. Não contribuir seria a opção do trabalhador informado e racional. Por isso, um BPC com valor inferior a um salário mínimo seria o incentivo mais adequado. 

A ideologia, entretanto, deixa buracos factuais descobertos. Como explicar que 56% dos benefícios urbanos do sistema previdenciário estejam na faixa de um salário mínimo? Por que a grande maioria dos trabalhadores contribuiu para receber um salário mínimo? Como explicar que apenas 2 milhões de idosos estejam no BPC, passados 20 anos de sua vigência? Em um mundo em que o emprego está desaparecendo, a confirmação da premissa requer muitas explicações adicionais.

A boa notícia é que a produção de evidências e a opinião pública desempenharam até aqui um bom serviço à qualidade do debate. Há boas razões para crer que também afetarão a decisão a ser tomada. Nem tudo está perdido! 


Marta Arretche é professora-titular do Departamento de ciência política da USP e diretora do Centro de Estudos da Metrópole (Cebrap/USP).  Aqui apresenta o tema da Mesa 5 do seminário de 50 anos do Cebrap.

Seminário sobre democracia celebra 50 anos do Cebrap 

Fundado em 3 de maio de 1969, o Cebrap promove o seminário internacional Democracia à Brasileira para comemorar suas cinco décadas de atividade. Pesquisadores renomados que passaram ou ainda integram o instituto  discutirão as turbulências políticas atuais. Os debates ocorrerão no auditório do Sesc Vila Mariana (r. Pelotas, 141). Inscrições podem ser realizadas pelo site do Sesc. Ingressos custam de R$ 9 a R$ 30. 

14.mai (terça)

19h - Abertura
Danilo Miranda (diretor do Sesc-SP) e Angela Alonso (presidente do Cebrap)

19h20 - Vídeo Cebrap – 50 anos pensando o Brasil

19h45 - Mesa 1 - Democracia em crise?
Mediação: Maria Hermínia Tavares de Almeida (Cebrap/USP)
Conferencista: Adam Przeworski (NYU)

15.mai (quarta)

10h - Mesa 2 - Instituições políticas brasileiras
Mediação: Miriam Dolhnikoff (Cebrap/USP)
Debatedores: Fernando Limongi (Cebrap/USP/FGV), Argelina Figueiredo (Cebrap/IESP) e Maria Hermínia Tavares de Almeida (Cebrap/USP)

14h - Mesa 3 - Mobilizações sociais
Mediação: Arilson Favareto (Cebrap/UFABC)
Debatedores: Daniel Cefaï (EHESS), Angela Alonso (Cebrap/USP) e Adrian Lavalle (Cebrap/USP)

16h30 - Mesa 4 - Desenvolvimento, trabalho e políticas públicas
Mediação: Carlos Torres Freire (Cebrap)
Debatedores: Elisabeth Reynolds (MIT), Glauco Arbix (Cebrap/USP) e Alvaro Comin (Cebrap/USP)

16.mai (quinta)

10h Mesa 5 - Desigualdades
Mediação: Marcia Lima (Cebrap/USP)
Debatedores: Pablo Beramendi (Duke University), Marta Arretche (Cebrap/USP) e Marcelo Medeiros (Ipea)

14h - Mesa 6 - Religião, política e espaço público
Mediação: Mauricio Fiore (Cebrap)
Debatedores: Juan Vaggione (Conicet), Paula Montero (Cebrap/USP) e Ronaldo Almeida (Cebrap/Unicamp)

16h30 - Mesa 7 - Debates políticos do espaço público
Mediação: Marta Machado (Cebrap/FGV)
Debatedores: Magali Bessone (Paris I), Marcos Nobre (Cebrap/Unicamp) e Sergio Costa (Cebrap/Universidade Livre de Berlim/Mecila)

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