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#MeToo afasta maestros renomados e abala alicerces de orquestras

Fenômeno sinaliza enfraquecimento da figura do regente como autocrata com poder de vida e morte

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A avalanche de denúncias de assédio sexual na indústria de entretenimento abalou até os alicerces da aparentemente inexpugnável torre de marfim da música clássica. Iniciado com as acusações contra o produtor cinematográfico Harvey Weinstein, no final de 2017, o movimento #MeToo atingiu pelo menos três consagradas batutas internacionais.

Tudo começou há um ano, quando um dos mais badalados regentes da cena norte-americana, James Levine, 75, foi demitido do Metropolitan Opera (o Met), de Nova York, onde vinha atuando com destaque há mais de quatro décadas.

levine levanta batuta de olhos fechados
O maestro americano James Levine conduz orquestra no Carnegie Hall, em 2016  - Robert Altman/The New York Times

Isso aconteceu após uma sindicância interna, motivada por acusações de assédio e abuso sexual contra o maestro, entre as décadas de 1970 e 1990. Levine imediatamente processou a casa, pedindo US$ 5,8 milhões em indenização. No final de março último, a juíza Andrea Masley descartou a maioria das alegações de que o regente teria sido difamado, mas a ação legal continua.

Mais ou menos na mesma época, pipocaram denúncias similares contra o regente suíço Charles Dutoit, 82 —seis casos entre 1985 e 2010. Ele negou, mas teve que deixar o cargo de diretor artístico da Orquestra Filarmônica Real, em Londres, e várias orquestras importantes cancelaram concertos do regente ou cortaram  laços com ele, incluindo as de San Francisco, Chicago e Filadélfia, bem como a Filarmônica de Nova York.

Algumas sinfônicas abriram investigações internas para apurar as denúncias contra Dutoit. A de Boston concluiu que elas eram críveis; já a Sinfônica de Montreal (que o regente comandou de 1977 a 2002, tendo saído após queixas de ofensas e maus-tratos contra os músicos) refutou-as como infundadas. 

Por fim, em agosto do ano passado, o italiano Daniele Gatti, 57, foi demitido de um dos postos mais cobiçados do mundo da regência, o de diretor artístico da cultuada Orquestra Concertgebouw, de Amsterdã, após um artigo no jornal Washington Post acusá-lo de assédio sexual. 

Gatti negou e, após ameaças de processo, no último mês de abril o maestro e a Concertgebouw lançaram uma declaração conjunta, na qual a orquestra reconhece o regente como “parte importante de seu legado artístico”, e os dois concordam em não se manifestarem mais sobre o tema.

O episódio parece selar o retorno de Gatti, que, em dezembro, foi nomeado diretor musical da Ópera de Roma. Assim como Dutoit conseguiu voltar à ativa, como principal regente convidado da Filarmônica de São Petersburgo.

Seria precipitado, contudo, vaticinar que as retomadas das carreiras de Gatti e Dutoit sinalizam o fim do #MeToo na música clássica.

Uma vez aberta, a caixa de Pandora obstina-se a não ser fechada, como demonstram as denúncias de assédio que surgem também contra músicos em posição de liderança em orquestras norte-americanas —como William Preucil e Massimo La Rosa, demitidos de suas posições de chefes, respectivamente, dos naipes de violinos e trombones da Orquestra de Cleveland; ou Jonathan Carney, suspenso do cargo de “spalla” da Sinfônica de Baltimore.

Tais fenômenos parecem sinalizar o enfraquecimento da figura do regente como o autocrata com poder de vida e morte sobre seus músicos, uma espécie de feitor de escravos, sentindo-se desobrigado a prestar contas a quem quer que seja. 

Talvez não tenha havido nada mais sintomático desse novo papel do maestro do que o apoio, em março deste ano, que um dos maiores astros da batuta da atualidade, o napolitano Riccardo Muti, 77, deu à greve dos integrantes de sua orquestra, a Sinfônica de Chicago, chegando a comparecer aos piquetes.

O movimento é ainda mais significativo se levarmos em conta que as instituições da música erudita aparentam ver a si mesmas como museus não apenas do repertório do século 19, como também dos usos e valores dessa época.

Não custa lembrar que a Filarmônica de Berlim só contratou a primeira musicista do sexo feminino, a violinista suíça Madeleine Carruzzo, em 1982 —e sua filarmônica rival, a de de Viena, só o fez em 1997.

Se a presença de regentes negros à frente de orquestras continua constituindo uma raridade, a de mulheres começa a se fazer sentir, ainda que com velocidade inferior à desejável. Dentre as 40 regentes mais requisitadas de 2018, segundo as estatísticas do site Bachtrack, aparecem duas mulheres: as norte-americanas JoAnn Falletta, em 19º lugar, e a titular da Osesp, Marin Alsop, em 39º.

O fim do despotismo do regente e a ocupação de postos de chefia por pessoas fora do padrão hegemônico têm o potencial de acarretar, inclusive, um novo frescor estético na música de concerto. 

Variedade no comando, variedade nas escolhas: ao adotarem os valores sociais e representativos do século 21, as instituições musicais podem, sem descuidar do respeito à tradição, abrir-se também para as poéticas de nosso tempo e sua inebriante diversidade. 


Irineu Franco Perpetuo é jornalista especializado em música clássica e tradutor.

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