A avalanche de denúncias de assédio sexual na indústria de entretenimento abalou até os alicerces da aparentemente inexpugnável torre de marfim da música clássica. Iniciado com as acusações contra o produtor cinematográfico Harvey Weinstein, no final de 2017, o movimento #MeToo atingiu pelo menos três consagradas batutas internacionais.
Tudo começou há um ano, quando um dos mais badalados regentes da cena norte-americana, James Levine, 75, foi demitido do Metropolitan Opera (o Met), de Nova York, onde vinha atuando com destaque há mais de quatro décadas.
Isso aconteceu após uma sindicância interna, motivada por acusações de assédio e abuso sexual contra o maestro, entre as décadas de 1970 e 1990. Levine imediatamente processou a casa, pedindo US$ 5,8 milhões em indenização. No final de março último, a juíza Andrea Masley descartou a maioria das alegações de que o regente teria sido difamado, mas a ação legal continua.
Mais ou menos na mesma época, pipocaram denúncias similares contra o regente suíço Charles Dutoit, 82 —seis casos entre 1985 e 2010. Ele negou, mas teve que deixar o cargo de diretor artístico da Orquestra Filarmônica Real, em Londres, e várias orquestras importantes cancelaram concertos do regente ou cortaram laços com ele, incluindo as de San Francisco, Chicago e Filadélfia, bem como a Filarmônica de Nova York.
Algumas sinfônicas abriram investigações internas para apurar as denúncias contra Dutoit. A de Boston concluiu que elas eram críveis; já a Sinfônica de Montreal (que o regente comandou de 1977 a 2002, tendo saído após queixas de ofensas e maus-tratos contra os músicos) refutou-as como infundadas.
Por fim, em agosto do ano passado, o italiano Daniele Gatti, 57, foi demitido de um dos postos mais cobiçados do mundo da regência, o de diretor artístico da cultuada Orquestra Concertgebouw, de Amsterdã, após um artigo no jornal Washington Post acusá-lo de assédio sexual.
Gatti negou e, após ameaças de processo, no último mês de abril o maestro e a Concertgebouw lançaram uma declaração conjunta, na qual a orquestra reconhece o regente como “parte importante de seu legado artístico”, e os dois concordam em não se manifestarem mais sobre o tema.
O episódio parece selar o retorno de Gatti, que, em dezembro, foi nomeado diretor musical da Ópera de Roma. Assim como Dutoit conseguiu voltar à ativa, como principal regente convidado da Filarmônica de São Petersburgo.
Seria precipitado, contudo, vaticinar que as retomadas das carreiras de Gatti e Dutoit sinalizam o fim do #MeToo na música clássica.
Uma vez aberta, a caixa de Pandora obstina-se a não ser fechada, como demonstram as denúncias de assédio que surgem também contra músicos em posição de liderança em orquestras norte-americanas —como William Preucil e Massimo La Rosa, demitidos de suas posições de chefes, respectivamente, dos naipes de violinos e trombones da Orquestra de Cleveland; ou Jonathan Carney, suspenso do cargo de “spalla” da Sinfônica de Baltimore.
Tais fenômenos parecem sinalizar o enfraquecimento da figura do regente como o autocrata com poder de vida e morte sobre seus músicos, uma espécie de feitor de escravos, sentindo-se desobrigado a prestar contas a quem quer que seja.
Talvez não tenha havido nada mais sintomático desse novo papel do maestro do que o apoio, em março deste ano, que um dos maiores astros da batuta da atualidade, o napolitano Riccardo Muti, 77, deu à greve dos integrantes de sua orquestra, a Sinfônica de Chicago, chegando a comparecer aos piquetes.
O movimento é ainda mais significativo se levarmos em conta que as instituições da música erudita aparentam ver a si mesmas como museus não apenas do repertório do século 19, como também dos usos e valores dessa época.
Não custa lembrar que a Filarmônica de Berlim só contratou a primeira musicista do sexo feminino, a violinista suíça Madeleine Carruzzo, em 1982 —e sua filarmônica rival, a de de Viena, só o fez em 1997.
Se a presença de regentes negros à frente de orquestras continua constituindo uma raridade, a de mulheres começa a se fazer sentir, ainda que com velocidade inferior à desejável. Dentre as 40 regentes mais requisitadas de 2018, segundo as estatísticas do site Bachtrack, aparecem duas mulheres: as norte-americanas JoAnn Falletta, em 19º lugar, e a titular da Osesp, Marin Alsop, em 39º.
O fim do despotismo do regente e a ocupação de postos de chefia por pessoas fora do padrão hegemônico têm o potencial de acarretar, inclusive, um novo frescor estético na música de concerto.
Variedade no comando, variedade nas escolhas: ao adotarem os valores sociais e representativos do século 21, as instituições musicais podem, sem descuidar do respeito à tradição, abrir-se também para as poéticas de nosso tempo e sua inebriante diversidade.
Irineu Franco Perpetuo é jornalista especializado em música clássica e tradutor.
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