Morte da democracia virou bordão para atrair imprensa, diz autor

Renomado cientista político, Adam Przeworski refuta teses pessimistas, mas reconhece riscos

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[RESUMO] Convidado de honra para seminário do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) , o renomado cientista político polonês Adam Przeworski refuta as teses sobre a morte da democracia apresentadas por muitos de seus colegas. Vê, no entanto, as erosões graduais do sistema efetuadas por meios legais como um fenômeno relativamente novo.

A crise da democracia. No campo da ciência política, é provável que nenhum outro tema tenha sido mais debatido nos últimos quatro, cinco anos. Eventos de natureza e efeitos  variados —como a vitória de Donald Trump nos EUA, do brexit no Reino Unido, de Viktor Orbán na Hungria e de Jair Bolsonaro no Brasil, entre outros— levaram a discussão para muito além do mundo acadêmico, despertando um insuspeito interesse popular por teorias políticas. Livros sobre a derrocada do modelo de democracia liberal viraram best-sellers em vários países.

O cientista político Adam Przeworski, 79, não nega a tão propalada crise, mas considera que os prognósticos mais pessimistas de seus colegas não passam de artimanhas para atrair a atenção da imprensa.

adam przeworski atrás de púlpito
O professor Adam Przeworski, da New York University, durante palestra - Cecília Bastos/Jornal da USP

As ameaças à democracia, diz ele, têm causas históricas profundas, cujas raízes ligam-se a condições econômicas, sociais e culturais. O capitalismo, afirma, impõe os principais limites à democracia, relação conflituosa de solução quase impossível.

Nascido na Polônia no começo da Segunda Guerra Mundial, professor  do departamento de ciência política da Universidade de Nova York (EUA), Przeworski é uma das principais referências mundiais no estudo de democracia e eleições. 

Numa pesquisa célebre no meio acadêmico, desenvolvida, entre outros, com o brasileiro Fernando Limongi, aponta que a riqueza de um país é fator preponderante para a preservação dos valores democráticos. A partir de determinado nível de desenvolvimento econômico, diz o estudo, a democracia jamais entrará em colapso. 

Przeworski fará a conferência da primeira mesa dos seminários promovidos pelo Cebrap.
 

Nos últimos anos, muitos cientistas políticos passaram a dizer que a democracia está morrendo ou corre sérios perigos mesmo em regiões em que suas bases estão mais consolidadas, como EUA e países da Europa Ocidental. O senhor concorda? Não, essas declarações destinam-se apenas a atrair manchetes de jornal. É verdade que muitas democracias estão passando por crises de instituições representativas, crises que têm profundas raízes nas condições econômicas, sociais e culturais. 

Essas crises podem durar muito tempo e algo terá que mudar, mas acredito que a democracia, como método de escolher governos por meio de eleições, está aqui para ficar.

Em um estudo famoso publicado em 1996, o senhor e seus parceiros concluíram que nenhuma democracia jamais caiu num país cuja renda per capita anual excedesse os US$ 6.055 (o nível argentino em 1976). Isso ainda se mantém? Isso ainda é verdade. O único país em que a democracia entrou em colapso depois de 1976, com uma renda ligeiramente superior à da Argentina, é a Tailândia. Mas no passado a maioria das democracias foi derrubada pelos militares, que perderam tanto a capacidade como a vontade de se engajar na política. 

O que é novo é a subversão da democracia por políticos democraticamente eleitos, uma erosão gradual da democracia por meios constitucionais, como na Venezuela, na Turquia, na Hungria e talvez no meu país natal, a Polônia.

O senhor também percebe uma onda populista em todo o mundo? Sim, há uma onda populista. Mas não se pode reclamar da persistente e até crescente desigualdade econômica e rejeitar as críticas populistas às instituições representativas tradicionais: se essas instituições estivessem funcionado bem, teríamos menos desigualdade.

O senhor aponta que o desempenho econômico é um fator fundamental para a sobrevivência da democracia. Até que ponto a democracia é dependente do capitalismo? A relação entre democracia e capitalismo está sujeita a pontos de vista contrastantes. Um reivindica liberdade política, o outro, liberdade econômica. Equiparar os conceitos de “liberdade” nos dois domínios é apenas um jogo de palavras. Observando a história, deveríamos nos surpreender com a coexistência do capitalismo e da democracia. Desde o século 17, quase todos, à direita e à esquerda, acreditavam que a desigualdade econômica não pode coexistir com a igualdade política.

Essas previsões se revelaram falsas. Os partidos da classe trabalhadora que esperavam abolir a propriedade privada perceberam que essa meta é inviável, aprenderam a valorizar a democracia e a administrar as economias quando ganhavam as eleições. Os sindicatos, também originalmente vistos como uma ameaça mortal ao capitalismo, aprenderam a moderar suas demandas. 

Já os partidos políticos burgueses e os empresários aceitaram alguma redistribuição de renda. Formou-se um compromisso de convivência, e os governos aprenderam a organizá-lo: regular as condições de trabalho, desenvolver programas de seguridade social e equalizar oportunidades, ao mesmo tempo em que promovem investimentos e neutralizam os ciclos econômicos.

No entanto, esse compromisso está agora quebrado. Os sindicatos perderam muito de sua capacidade de organizar e disciplinar os trabalhadores. Os partidos socialistas perderam suas raízes de classe e, com elas, sua distinção ideológica e política. O efeito mais visível dessas mudanças é o aumento acentuado da desigualdade de renda.

Mas seria possível uma democracia liberal, tal qual a conhecemos hoje, não capitalista?  O capitalismo não é necessário nem suficiente para a democracia. Nós tivemos muitas ditaduras sob o capitalismo. Mas, como acredito que o capitalismo, de uma forma ou de outra, está aqui para ficar, então a possibilidade de uma democracia socialista, por exemplo, é irrelevante.

Qual é o principal problema enfrentado pela democracia liberal hoje?  Os limites mais importantes da democracia se originam no capitalismo, um sistema no qual as decisões relativas à alocação de recursos produtivos, a investimento e emprego são guiadas pela concorrência de mercado.

O capitalismo impõe limites às decisões que podem ser alcançadas pelo processo democrático, limites que vinculam todos os governos, independentemente de sua ideologia. Como acredito que não há alternativas ao capitalismo, a democracia está condenada a funcionar dentro desses limites.

Isso não quer dizer que todos os governos democráticos são os mesmos: há espaços dentro dos limites. Tudo dependerá das condições específicas de cada sociedade e de sua configuração política.

Como você avalia a situação nos Estados Unidos hoje, após a eleição de Trump?Trump foi bem-sucedido em contornar as normas constitucionais para adotar muitas políticas desastrosas, reduzindo a proteção social, aumentando a desigualdade e afrouxando a legislação sobre o meio ambiente. Sua estratégia política, bastante divisiva, tem sido manter o apoio de sua base. Mas ele não conseguiu consolidar seu poder, talvez por pura incompetência.

E como vê o governo Bolsonaro? Como Trump, Bolsonaro está buscando uma estratégia política altamente divisora, o que é sempre perigoso. A democracia funciona quando as apostas políticas não são muito altas, quando estar do lado perdedor não é muito doloroso. A responsabilidade dos presidentes democráticos é assegurar à oposição que seus pontos de vista e interesses estão sendo respeitados.

Pesquisadores também apontam que a população está perdendo seu papel decisório para instituições transnacionais e supranacionais, que hoje controlam muitas das principais deliberações políticas, econômicas e sociais. Um efeito negativo disso seria o descontentamento das massas com o sistema de democracia liberal. Como você avalia essa situação? Essas instituições de fato limitam atuações de governos e a capacidade de decisão da população. No geral, porém, concordo com aqueles que acreditam que os efeitos das instituições transnacionais e supranacionais podem ser controlados pelos órgãos nacionais.

Percebe um distanciamento perigoso entre as elites políticas e intelectuais e a população? Não creio que a divisão seja apenas entre elites e massas, há também profundas divisões nas classes dominantes.

Em vários países, as elites que obtêm suas riquezas do capital tendem a ter posições políticas diferentes daquelas que derivam da educação, do meio intelectual. E a população também não é constituída de um bloco apenas. Por isso, diferentes coalizões políticas são possíveis, com diferentes propostas de soluções.

A democracia é ainda o único caminho para a prosperidade econômica? Nunca acreditei que a democracia gerasse necessariamente desenvolvimento econômico. Toda a pesquisa mostra que, na média, as democracias não crescem mais lentamente que as não democracias, mas não está claro se elas crescem mais rápido.

É possível estipular que condições levam uma democracia a degenerar numa ditadura? E o oposto, quando uma ditadura morre e dá lugar a uma democracia? Sim, há uma enorme quantidade de pesquisa que identifica essas condições. A descoberta mais importante ainda é que as democracias sobrevivem em países economicamente desenvolvidos. Mas essas pesquisas se concentram em casos em que transições de regime são eventos claramente definidos, onde algumas linhas claras foram cruzadas.

O perigo hoje é que algumas forças políticas afirmariam com sucesso que a única maneira de remediar crises econômicas, divisões profundamente arraigadas na sociedade ou colapsos da ordem pública é abandonar a liberdade política, unir-se sob um líder forte, reprimir o pluralismo de opiniões. Ou seja, um deslize gradual em direção ao autoritarismo. 

O senhor diz que democracias sobrevivem em economias desenvolvidas. Países em desenvolvimento, como o Brasil, estão condenados a turbulências políticas?  Pelos meus cálculos, o Brasil está suficientemente desenvolvido para que a democracia esteja a salvo de um colapso abrupto. Mas as erosões graduais da democracia por meios legais são um fenômeno relativamente novo e ainda não conhecemos seus padrões. 

Como percebe o apreço da população pela democracia? Grande parte da sociedade estaria disposta a abrir mão dela em troca de estabilidade financeira, por exemplo? Acredito que as pessoas valorizam tanto os resultados das políticas, como a prosperidade financeira, quanto a democracia, com diferentes preferências individuais entre os dois.

A dificuldade que elas enfrentam é que suas finanças pessoais são algo que experimentam diretamente, enquanto a ameaça à democracia não é diretamente sentida pela maioria, não é fácil de identificar. 

Assim, podem ser seduzidas por um Maduro, um Erdogan, um Trump ou um Bolsonaro. 

Não acredito, porém, que a ameaça à democracia possa ser identificada por meio de atitudes individuais —certamente não por respostas a perguntas de pesquisa.

A luta pelos direitos das minorias se tornou um fator de acirramento da polarização política e social, de modo a ameaçar a democracia? Como solucionar os conflitos entre direitos individuais, vontade popular e bases institucionais? Não creio que a luta pelos direitos das minorias seja desestabilizadora, mas penso que a própria linguagem dos direitos pode ser. Nas últimas décadas, muito do que costumávamos considerar como “interesses” foi consagrado como “direitos”. 

Os conflitos de interesses são processados ​​por mecanismos políticos, principalmente eleições. Os direitos, porém, são invioláveis, não sujeitos à política comum. Como então os conflitos de direitos podem ser resolvidos? 

E os direitos muitas vezes entram em conflito: o direito à propriedade está em conflito com o direito de todos a não morrerem de fome, a liberdade de expressão conflita com o direito de algumas pessoas de não serem chamadas por palavrões. Acho que produzimos muitos direitos e  agora nossos sistemas institucionais têm dificuldade em lidar com conflitos entre eles. 


Marco Rodrigo Almeida, editor-adjunto da Ilustríssima, foi repórter de Poder e coordenador de Artigos e Eventos da Folha.

Ilustrações de Daniel Bueno.

Seminário sobre democracia celebra 50 anos do Cebrap 

Fundado em 3 de maio de 1969, o Cebrap promove o seminário internacional Democracia à Brasileira para comemorar suas cinco décadas de atividade. Pesquisadores renomados que passaram ou ainda integram o instituto  discutirão as turbulências políticas atuais. Os debates ocorrerão no auditório do Sesc Vila Mariana (r. Pelotas, 141). Inscrições podem ser realizadas pelo site do Sesc. Ingressos custam de R$ 9 a R$ 30. ​

14.mai (terça)

19h - Abertura
Danilo Miranda (diretor do Sesc-SP) e Angela Alonso (presidente do Cebrap)

19h20 - Vídeo Cebrap – 50 anos pensando o Brasil

19h45 - Mesa 1 - Democracia em crise?
Mediação: Maria Hermínia Tavares de Almeida (Cebrap/USP)
Conferencista: Adam Przeworski (NYU)

15.mai (quarta)

10h - Mesa 2 - Instituições políticas brasileiras
Mediação: Miriam Dolhnikoff (Cebrap/USP)
Debatedores: Fernando Limongi (Cebrap/USP/FGV), Argelina Figueiredo (Cebrap/IESP) e Maria Hermínia Tavares de Almeida (Cebrap/USP)

14h - Mesa 3 - Mobilizações sociais
Mediação: Arilson Favareto (Cebrap/UFABC)
Debatedores: Daniel Cefaï (EHESS), Angela Alonso (Cebrap/USP) e Adrian Lavalle (Cebrap/USP)

16h30 - Mesa 4 - Desenvolvimento, trabalho e políticas públicas
Mediação: Carlos Torres Freire (Cebrap)
Debatedores: Elisabeth Reynolds (MIT), Glauco Arbix (Cebrap/USP) e Alvaro Comin (Cebrap/USP)

16.mai (quinta)

10h Mesa 5 - Desigualdades
Mediação: Marcia Lima (Cebrap/USP)
Debatedores: Pablo Beramendi (Duke University), Marta Arretche (Cebrap/USP) e Marcelo Medeiros (Ipea)

14h - Mesa 6 - Religião, política e espaço público
Mediação: Mauricio Fiore (Cebrap)
Debatedores: Juan Vaggione (Conicet), Paula Montero (Cebrap/USP) e Ronaldo Almeida (Cebrap/Unicamp)

16h30 - Mesa 7 - Debates políticos do espaço público
Mediação: Marta Machado (Cebrap/FGV)
Debatedores: Magali Bessone (Paris I), Marcos Nobre (Cebrap/Unicamp) e Sergio Costa (Cebrap/Universidade Livre de Berlim/Mecila)

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