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Onda de fim do mundo aterroriza cinema e TV

Desde a paranoia dos anos 1970, não se viam tantas distopias pós-apocalípticas

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Luiz Carlos Oliveira Jr.

As ficções pós-apocalípticas estão em voga há alguns anos. Na literatura, no cinema, em séries, telefilmes, animações —em todo lugar pululam narrativas distópicas e alegorias do fim do mundo. Desde a paranoia nuclear dos anos 1970, não se viam tantas obras empenhadas em especular sobre o fim da humanidade.

Em plataformas como a Netflix, diversos representantes do gênero constam entre os produtos “em alta”: as séries “3%”, “Black Mirror” e “The Walking Dead”; os longas “Bird Box” (dirigido por Susanne Bier), “Próxima Parada: Apocalipse” (David M. Rosenthal) e “Aniquilação” (Alex Garland), todos de 2018.

Sandra Bullock em cena de 'Bird Box',  que está desde sexta (21) na Netflix"‚Merrick Morton/Folhapress.
A personagem observa um pássaro preso em uma gaiola.
Sandra Bullock em cena de 'Bird Box', que está desde sexta (21) na Netflix"‚Merrick Morton/Folhapress - Merrick Morton/Netflix

O pano de fundo talvez seja demasiado óbvio, mas cumpre enunciá-lo mesmo assim: a escalada política da extrema direita põe em risco os acordos da “paz ocidental” e as conquistas recentes em matéria de direitos humanos; os parques industriais instalados nas periferias do capitalismo geram condições de vida e trabalho monstruosas; o perigo ecológico nunca foi tão real.

Um breve histórico pode ser útil. Nas franquias “O Exterminador do Futuro” e “Robocop”, iniciadas nos anos 1980, o pessimismo com o mau uso da tecnologia e a barbárie de um mundo dominado pelas megacorporações capitalistas já prefiguravam um universo pós-apocalíptico. 

Pouco depois, Hollywood resgataria a fórmula do cinema-catástrofe. Primeiro, em resposta ao marasmo “fim de século” dos anos 1990: “Armageddon” (de Michael Bay, 1998) “Impacto Profundo” (Mimi Leder, 1998) e “Independence Day” (Roland Emmerich, 1996). 

 

Na década seguinte, seria motivada pelo 11 de Setembro, como em “Guerra dos Mundos” (Steven Spielberg, 2005). Mas a ameaça terminal permanecia a mesma do sci-fi de série B dos anos 1950: a máquina, os abusos da ciência, os alienígenas.

Com “Fim dos Tempos” (M. Night Shyamalan, 2008), “Melancolia” (Lars von Trier, 2011) e “4:44 – O Fim do Mundo” (Abel Ferrara, 2011), entra em cena uma força apocalíptica opaca, insondável. As causas do fim do mundo permanecem obscuras. 

 

Quem realmente abriu as portas do inferno foi John Carpenter, não só com sua “trilogia do apocalipse” —“O Enigma de Outro Mundo” (1982), “Príncipe das Sombras” (1987), “À Beira da Loucura” (1994)— como também na obra-prima “Eles Vivem” (1988), em que um conglomerado midiático serve de fachada para invasores alienígenas que nada mais são do que o próprio establishment. Carpenter inverte a ficção científica calcada no anticomunismo e faz com que os extraterrestres encarnem os poderes capitalistas.

As narrativas da onda pós-apocalíptica atual, invariavelmente, se concentram menos nos efeitos macrocósmicos ou macropolíticos do que nas formas de relações intersubjetivas engendradas pela situação-limite. 

Enredo padrão: um pequeno grupamento humano se forma por acaso, no afã de escapar do cataclismo, e acaba por se provar um recorte privilegiado da sociedade em sua diversidade cultural, étnica e psicológica. 

A hipótese central é sempre a mesma: o apocalipse catalisa a reação pela qual aflora a “essência” dos sujeitos. Uns radicalizam o individualismo; outros se apegam mais do que nunca ao sentido de comunidade e à ética da vida coletiva; outros tantos se agregam em hordas à caça de combustível e carne humana.

A escassez de meios experimentada pelos personagens das ficções distópicas, às vezes, desdobra-se na própria técnica de dramatização.

Em “Um Lugar Silencioso” (John Krasinski, 2018), o mundo foi invadido por criaturas que nada veem, mas tudo ouvem —as personagens vivem em absoluto silêncio. O diálogo é minimizado, ainda que a fórmula do espetáculo pouco se altere.

Já em “Bird Box”, as pessoas não estão condenadas ao mutismo, mas à cegueira, pois sabem que comete suicídio quem se depara com uma visão inenarrável, que nunca aparece para o espectador. Como de praxe no cinema de horror, o fora de campo é hipertrofiado —zona letal, inesgotável reserva de imaginário e medo. 

O filme de horror clássico também adiava mostrar o que estava fora de campo, mas, no fim, revelava o segredo. O medo tinha um objeto. Agora, o fora de campo é indecifrável e a ameaça, onipresente. Passamos do medo à paranoia.

Para não correr o risco de ter a visão fatal, os personagens de “Bird Box” precisam andar de olhos vendados. Os únicos imunizados são os loucos, visionários por natureza, que reagem à aparição com olhar maravilhado. A civilização da imagem parece punida por seus excessos. As imagens jogaram véu sobre o mundo e intermediaram a relação com o outro. Chegou a hora de pagar o preço.

A protagonista, interpretada por Sandra Bullock, é uma artista plástica, alguém com olho especial para as imagens. Ela reprime o namorado por incitar as crianças a vislumbrar mundos imaginários: é preciso se ater ao presente concreto, como condição de sobrevivência. Ao final, ela se arrepende. Moral da fábula: menos imagem, mais imaginação.

Por ora, permanecemos com os olhos grudados na tela do computador, à espera do próximo anúncio do fim do mundo.


Luiz Carlos Oliveira Jr. é crítico e pesquisador de cinema, autor do livro “A Mise en Scène no Cinema - do Clássico ao Cinema de Fluxo” (editora Papirus).

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