Prêmios em Cannes coroam caminhos do ameaçado cinema brasileiro

Conquistas do país no mais importante festival do mundo são linha de chegada de percurso que vem dos anos 1990

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[RESUMO]  Prêmios e críticas positivas conquistados por filmes brasileiros no mais importante festival de cinema do mundo são a linha de chegada de um percurso que começou a ser trilhado nos anos 1990, com políticas públicas que agora estão sob ameaça.

Em 2001, ano em que foi criada a Agência Nacional do Cinema (Ancine), a Ilustrada contava: “Brasil fica fora do Festival de Cannes”. Naquele ano, 30 longas-metragens estrearam no país, e o cinema brasileiro vendeu 6,9 milhões de ingressos.

No último fim de semana, o mesmo caderno noticiava: “Com forte presença em Cannes, Brasil conquista vitórias inéditas”. No ano passado, 170 títulos nacionais foram lançados nos cinemas e venderam, juntos, mais de 20 milhões de ingressos.

Na 72ª edição do Festival de Cannes, encerrada no sábado (25), o Brasil esteve representado nas três mostras principais: a competição (“Bacurau”, “O Traidor”), a seção Um Certo Olhar (“A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” e “Port Authority”) e a Quinzena dos Realizadores (“The Lighthouse” e “Sem Seu Sangue”).

Três dos filmes foram dirigidos por brasileiros e três, por estrangeiros. Esse conjunto encerra uma potência que o cinema brasileiro já vinha demonstrando, mas que se materializou, de uma vez só, em prêmios, negócios e visibilidade.

“Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, levou o prêmio do júri na mais concorrida competição do cinema mundial. “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, dirigido por Karim Aïnouz e produzido por Rodrigo Teixeira, da RT Features, é o primeiro filme brasileiro a ganhar a mostra Um Certo Olhar. “The Lighthouse”, do norte-americano Robert Eggers, também produzido por Teixeira (assim como “Port Authority”), venceu o prêmio da crítica na Quinzena.

Para além dos prêmios, houve todo um Brasil sendo visto, comprado e discutido. “O Traidor”, dirigido pelo mestre italiano Marco Bellocchio e produzido pelos irmãos Caio e Fabiano Gullane, da Gullane Entretenimento, foi vendido para 35 países.

“Sem Seu Sangue”, longa-metragem de estreia de Alice Furtado, feito por ex-alunos da Universidade Federal Fluminense (UFF), foi colocado na lista dos dez filmes “must-see” [a serem vistos] do jornal britânico The Guardian. Em um só dia, Mendonça e Dornelles conversaram com 104 jornalistas do mundo.

Mas, afinal de contas, como o Brasil chegou lá? As respostas para essa pergunta são várias —e podem ser dissonantes até. Uma coisa é certa: para tateá-las, é preciso olhar para trás. Os feitos brasileiros em Cannes são a linha de chegada de um percurso que começou a ser trilhado, de forma sistemática, a partir de meados dos anos 1990. 

Nunca é demais lembrar que, levado ao chão pelo fim da estatal Embrafilme (1969-1990), o cinema brasileiro colocou nas telas, em 1992, apenas dois títulos. A produção começou a renascer com as leis de incentivo fiscal —a Lei Rouanet (1991) e a Lei do Audiovisual (1993). Mas foi a partir dos anos 2000, com a Ancine e a instituição de vários marcos legais, que novas frestas se abriram.

Um desses marcos é a Lei 12.485 (2011), que estabeleceu cotas de conteúdo nacional na TV paga e transferiu uma taxa paga pelas empresas de telefonia para o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Os recursos e a política do FSA redefiniram a posição do Brasil no tabuleiro do audiovisual.

Além dos filmes na tela, o país compareceu a Cannes com centenas de projetos. Vania Catani, produtora de “Zama” (2017), da argentina Lucrecia Martel, por exemplo, levou para o mercado do festival sete projetos em desenvolvimento e dois em pós-produção.

Antes do FSA, o Brasil era apenas mais um país pedindo dinheiro; depois, passou a ter algo a oferecer. Na primeira vez em que foi a Cannes, em 2004, Catani encontrou meia dúzia de produtores brasileiros. Neste ano, só no programa Cinema do Brasil, voltado à promoção e exportação, havia 41 empresas cadastradas. 

A longa e consistente caminhada pela Croisette, o bulevar de Cannes, é uma marca comum aos personagens dessa história. Mendonça Filho começou a ir ao festival, cobrindo-o como jornalista, quando os brasileiros eram poucos e os filmes, menos ainda. Antes de “O Som ao Redor” (2012), que o projetou internacionalmente, ele fez seis curtas. É dessa trajetória que brota a engenharia financeira e artística de “Bacurau”.

Em 2012, Mendonça Filho foi júri do Festival de Locarno ao lado de Mark Peploe, roteirista de Michelangelo Antonioni (1912-2007) e Bernardo Bertolucci (1941-2018). Peploe se encantou pelo primeiro longa do brasileiro, “O Som ao Redor”, e quis fazer um projeto com ele.

Em 2013, apresentou-o a Saïd Ben Saïd, produtor franco-tunisino de Roman Polanski, David Cronenberg e Paul Verhoeven. Saïd foi ao encontro com a lição de casa feita e, de pronto, decidiu colocar dinheiro em “Aquarius”, que concorreu à Palma de Ouro em 2016.

Em “Bacurau”, Saïd voltou a entrar como produtor, pondo ainda mais dinheiro. A França responde por quase metade do orçamento da produção rodada no sertão brasileiro. No Brasil, o principal aporte veio da distribuidora Vitrine, de Silvia Cruz, cuja parceria com Mendonça remonta ao documentário “Crítico” (2008).

A participação da empresa se deu por meio de uma linha de financiamento do FSA voltada a distribuidores. A Vitrine é o principal selo do cinema autoral brasileiro e, só em 2018, lançou 23 títulos. “Sem Seu Sangue” chegará às telas do país também pelas mãos de Silvia.

A descoberta dos talentos brasileiros por players internacionais se repete em “O Traidor”. Quem indicou os Gullane para Bellocchio foi o italiano Marco Müller, ex-diretor do Festival de Veneza, que farejou o potencial da dupla quando dirigia a Fabrica Cinema, programa da Benetton.

A Fabrica colocou dinheiro num dos primeiros trabalhos da Gullane: “Bicho de Sete Cabeças” (2001), de Laís Bodanzky. Quando Müller soube que Bellocchio queria filmar a saga do mafioso Tommaso Buscetta, que vivera no Brasil, sugeriu os Gullane. Em 2016, diretor e produtores se encontraram na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e a parceria foi fechada. Rodado entre Itália, Brasil e Alemanha, o filme traz Maria Fernanda Cândido como uma das protagonistas.

Assim como “Bacurau” e “O Traidor”, “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” é uma coprodução internacional. E o idealizador do projeto, Rodrigo Teixeira, é, não por acaso, um nome chave desse movimento de internacionalização. A estreia do produtor em Cannes, em 2011, se deu justamente com outro filme de Aïnouz, “O Abismo Prateado”.

Parte dos recursos alocados no ganhador da mostra Um Certo Olhar deste ano veio do Prêmio Adicional de Renda, concedido pela Ancine à RT pelos resultados de “Tim Maia” (2014) e “Alemão” (2014); parte veio da Sony, por meio de um benefício fiscal previsto na Lei do Audiovisual. 

Os filmes de Aïnouz e Bellocchio têm como agente de vendas internacionais a companhia alemã Match Factory, que representa o português Miguel Gomes e o americano Jim Jarmusch. Michael Weber, dono da Match, é também coprodutor de “A Vida Invisível”.

Por trás dessas parcerias e dessas pequenas histórias —todas grandes— está um edifício normativo enorme, que inclui acordos internacionais de coprodução, apoios financeiros de diferentes naturezas e uma persistência que também pode ser chamada de vocação. A ideia de que uma andorinha só não faz verão é bastante apropriada para o que se viu na Riviera Francesa.

Neste ano, mais de 20 títulos brasileiros participaram de festivais internacionais relevantes. Só no Festival de Berlim, em fevereiro, foram 12. A expressão artística e a inserção mercadológica têm feito com que os holofotes internacionais se voltem para o cinema feito no Brasil, jogando luz sobre as conquistas, mas também sobre as ameaças a uma política pública que, entre avanços e recuos, acertos e erros, possibilitou que tanta gente, junta, chegasse lá. 


Ana Paula Sousa, jornalista, é mestre em indústrias culturais e criativas pelo King’s College e doutora em sociologia da cultura pela Unicamp.

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