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Teatro é efêmero, nasce e morre todo dia, diz Mateus Solano

Ator conta como a filosofia oriental o ensina a lidar com a finitude da vida e da arte

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Mateus Solano

Daqui até a minha morte, pretendo ir cada vez mais fundo na filosofia oriental. Esbarrei com esse universo algumas vezes na minha trajetória: acho que esse mundo é o futuro —assim como o passado, o presente, é a origem de tudo. O trato holístico da sabedoria oriental mexe muito comigo.

A cultura ocidental olha muito para o próprio umbigo. O Oriente preza o desapego e o desprendimento. Você não tem problema em plantar hoje aquilo que só o seu neto vai colher. 

Mesmo a medicina está indo para o campo holístico, para tratar do indivíduo como um todo. O médico precisa saber como você é, do que se alimenta, e a partir daí entender onde sua doença se encaixa no todo. A medicina oriental é preventiva, não busca lucrar com a doença.

Quando eu tinha 30 e poucos anos, naquele momento em que se dá conta de que realmente vai morrer, me deram “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer”. Ele traz a proposta de pensar na morte todo dia, em vez de fugir e deixar para fazer isso só prestes a morrer. Essa prática serve não apenas para se preparar, mas para entender que a ideia da morte traz consigo a valorização da vida.

Pela primeira vez, com esse livro, fui colocado cara a cara com a sensação de que vou morrer. E comecei a me pôr no lugar de como seria não existir mais. Vivi um momento de terror, no início. Mas a partir desse estalo, viver ficou muito melhor. 

Na minha carreira, já fiz uma peça do escritor Nobel indiano Rabindranath Tagore, no qual interagiam três deuses principais, que eram Brahma, o criador que vê tudo, Vishnu, o deus das estações e da mudança, e Shiva, o destruidor, a dança da morte que recria a vida. 

E li também uma versão reduzida do “Mahabharata” —uma das maiores obras já escritas. Fiquei ainda mais encantado. É um dos livros fundamentais do hinduísmo —que, na verdade, é uma porção de religiões com deuses que as perpassam.

A meditação também se revelou uma descoberta. Operaria maravilhas no mundo se tivéssemos mais calma e amor uns pelos outros. Temos um olhar muito reprovador, muito crítico ao próximo —mais ainda na internet. 

Nunca me coloquei em uma posição de superioridade diante do outro, mas sou egocêntrico para caralho. Tenho paixão pelo meu próprio trabalho. O primeiro passo para entrar nessa lógica oriental foi reconhecer esses traços.

Passei a ver meu passado como um processo para chegar aonde estou agora. Não olho criticamente para o que eu fui; tudo são passos para chegar ao lugar onde se está.

Minha luta ambiental, de alguns anos para cá, também tem a ver com isso. Ela pode deixar a pessoa muito desesperançosa, no começo, porque você repara em como a maioria da população não se importa com a degradação do meio ambiente. Conheço ativistas que são pessoas amargas por isso; essa visão oriental me coloca numa outra perspectiva. Eu sei que vou morrer sem ver aquilo que plantei.

É algo que contribui para minha visão de mim como ferramenta, não como fim. A arte passa por mim, os personagens passam por mim. Sou apenas um instrumento.

Há algum tempo, fiz um curso com a diretora francesa Ariane Mnouchkine, no Théâtre du Soleil, e ela disse certa hora que os momentos mágicos do teatro são como um passarinho que, às vezes, pousa no ombro do ator. Vaidoso que é, ele pensa logo em engaiolar o bicho e tê-lo consigo para sempre. Mas antes de ele cogitar fazer isso, o pássaro já voou para longe.

Como atores, o que fazemos em cena é efêmero: nasce, cresce e morre todo dia. A peça que fiz ontem foi única, a de hoje será única. Metade do que acontece no momento teatral é aquilo que ensaiamos, a outra metade é o público que ri, chora, comemora. A efemeridade da arte espelha a da vida. 


Mateus Solano, ator, está em cartaz em “O Mistério de Irma Vap” no Teatro Porto Seguro até 16/6.

Depoimento a Walter Porto.

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