Coutinho filmou a poesia das pequenas falas, diz Marcelo Gomes

Cineasta lembra documentarista, com quem aprendeu que 'bom diretor é aquele que tem dois ouvidos bons'

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Marcelo Gomes

Dependendo do momento que vivemos, tem uma ou outra obra que nos toca mais. Agora, estou lançando meu primeiro documentário. Enquanto o executava, me lembrei muito de dois filmes que foram importantes na minha vida, de dois diretores essenciais na minha formação enquanto pessoa, enquanto cineasta e enquanto documentarista.

O primeiro é “Edifício Master” (2002), de Eduardo Coutinho. Ali, o cineasta ensina a prática de escutar e de construir intimidade em pouco tempo. Aprendi que o bom diretor é aquele que tem os dois ouvidos bons.

Ele pega um edifício no bairro carioca de Copacabana, que é um microcosmo do Brasil, e faz com que ali você encontre o mundo. Todos os tipos de pessoas, pensamentos e personalidades —senti algo parecido quando fui a Toritama (PE), cidade onde gravei meu novo filme, “Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar”. Há tanto uma dimensão afetiva quanto uma política, uma pessoal, uma social. Todas essas camadas estão presentes naquele microuniverso.

Fiquei realmente encantado quando vi “Edifício Master”; o que poderia ser apenas um documentário de entrevistas se tornou algo muito mais potente. Transbordava a simples ideia de um registro cinematográfico do cotidiano daquelas pessoas: ali, ele definia até o próprio ato de documentar. Você fica entre Coutinho e as pessoas, distante e ao mesmo tempo próximo.

O filme tem uma verdade enorme, não filosófica, mas emocional. Não existem grandes tramas narrativas. É a poesia das pequenas falas, dos pequenos gestos e reflexões. 

E, anos depois, eu descobri os “Diários” de David Perlov, um cineasta que nasceu no Rio, depois foi morar em Paris e em seguida, em Israel. Ele decide fazer uma visita ao passado e construir um diário íntimo da vida dele. Perlov usa a câmera como a escrita de poesia: mistura essa memorabilia de todos os lugares onde viveu com o desejo de construir rimas cinematográficas. 

São dois mestres pelos quais sou fascinado, que foram importantes não só para meu filme, mas para o modo como observo o mundo, como vejo o cotidiano e o fluxo do tempo. Aprendi a descobrir as emoções nos espaços públicos e privados que ambos frequentam.

Antes de mais nada, o que importa ao fazer um filme é a intuição e a instigação. Fazemos cinema para entender melhor a vida; para entender o outro e, assim, entender a nós mesmos. O cinema desses dois diretores é um exercício de alteridade. 

Outra coisa que aprendi é que quero fazer filmes apenas sobre as coisas que eu não entendo. Só para dar um exemplo: quando cheguei a Toritama e vi todos aqueles outdoors no meio do agreste, achei que só um documentário daria conta de compreender aquilo tudo. Percebi que ali estava o momento de documentar minha própria vida, já que vivi naquela região durante momentos da minha infância, e a vida do outro, que poderia ser eu. 

pessoas numa fábrica de tecido
Cena do documentário 'Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar' (2019), de Marcelo Gomes - Divulgação

Cheguei a conhecer Coutinho em vida; ele sabia que era um mestre para mim, e tenho pena de ter falado com ele menos do que deveria. Tivemos apenas conversas esporádicas, sempre muito boas. Ele acompanhava meus filmes, trocava às vezes confidências comigo. Na nossa última conversa, me contou que estava fazendo um filme em que voltaria à procura dos personagens de “Cabra Marcado para Morrer” (1984).

Falou uma vez algo que nunca mais esqueci: “Marcelo, o cinema não salva ninguém.” Essa fala um pouco niilista, na verdade, me soou muito bonita —o cinema não precisa salvar ninguém mesmo, ele está aí para que vejamos as diferentes janelas desse mundo e possamos nos entender. 

Por eu ter uma relação tão forte com o agreste, há um documentário de Coutinho que me toca tão profundamente que às vezes penso que só eu o entendo: chama-se “O Fim e o Princípio” (2005). Ele vai à cidade de São João do Rio do Peixe, na Paraíba, e começa a conversar com pessoas, todas velhas, sobre a vida. 

O assunto maior é a morte, mas é um filme tão cheio de vida. Há uma compreensão profunda daquele mundo rural, aquela vida simples que é de profunda complexidade. Aquelas pessoas dão conta de refletir sobre a vida de uma forma extremamente singular, com um senso de afeto, de honra, tão bonito e ético —de que estamos precisando muito no Brasil de hoje. Esse Brasil profundo que Coutinho capturou é o melhor que o Brasil tem.


Marcelo Gomes, diretor de “Cinema, Aspirinas e Urubus” e “Joaquim”, lança o documentário “Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar” em 11/7.

Depoimento a Walter Porto.

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