Em romance, jornalista se depara com cadáver pela primeira vez

'O Último Dia da Inocência', de Edney Silvestre, se passa às vésperas do golpe de 1964

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Edney Silvestre

[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página faz parte do romance “O Último Dia da Inocência”, no qual o autor mescla história do Brasil e ficção ao narrar a luta de um jovem jornalista para provar sua inocência em um caso de assassinato às vésperas do golpe militar de 1964. O livro sai no começo de julho, pela editora Record. 

Tudo tem uma priMeira vez. O cheiro de morte, não conhecia. Já vira mortos. Junto de mim. A meu lado. E no banco da frente. Por horas. Horas, me contaram. Mas cheiro, não. Não lembro. Não lembrava. Não assim. Nada assim. Nunca tantos mortos. Juntos. Uma sala de mortos. Ou que outro nome dar àquilo?

“O palácio dos abandonados”, definiu uma voz rouca atrás de mim.

“Sala oito. Instituto Médico Legal.”

Terno escuro, gravata, câmera pendurada no pescoço, bolsa de couro surrado no ombro esquerdo, cigarro no canto da boca oculta por bigode muito preto, menos que os cabelos emplastrados para trás com brilhantina ou algo assim gosmento, acima do rosto moreno por origem, mais ainda pelo sol do Rio de Janeiro. Já tinha visto outros como ele pelas várias redações onde procurei emprego. O clichê do repórter fotográfico. O primeiro clichê do dia. Se eu então soubesse alguma coisa sobre clichês. Se eu soubesse alguma coisa.

“Pela vida, pelos parentes, amantes, cafetões”, acrescentou. “Abandonados aqui é apenas a continuação de suas vidas.”

O segundo clichê do dia. Outros viriam. Mais do que eu saberia distinguir. Se eu fosse mais alerta ao que sinalizam os clichês.

“Cadáveres sem dono.”

Ahn, eu disse.

“Quase todos estão aqui há dias, semanas, meses.”

Marcelo Cipis

Estão, me ouvi perguntando, não verdadeiramente interessado, é mesmo? Se estavam ali havia tanto tempo, sem que ninguém reclamasse seus corpos, suas histórias não dariam a boa reportagem que eu precisava para me fazer notar. Urgentemente. Ou corria o risco de ficar engastado para sempre na repartição dos datilógrafos, decifrando a caligrafia dos tabeliões e batendo nas teclas da Remington verde e velha do Vigésimo Oitavo Cartório de Registros de Imóveis do Estado da Guanabara, o emprego que por enquanto pagava, mal e mal, as minhas contas.

Toda profissão tem que começar em algum lugar. Aquele era uma merda, mas era tão bom quanto qualquer outro, se você não tem porta de entrada, nem quem o indique. Repórter de polícia é o degrau mais baixo na cadeia alimentar do jornalismo. Acima eu não tinha acesso. Abaixo não havia mais ninguém.

“Até jogarem fora”, o fotógrafo acrescentou.


Edney Silvestre, jornalista, é autor dos livros “Se Eu Fechar os Olhos Agora”, vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance, e “A Felicidade é Fácil”, ambos pela editora Record.

Ilustração de Marcelo Cipis, artista visual.

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