Lições de Dostoiévski e Tolstói a um tradutor brasileiro

Rubens Figueiredo, um dos principais tradutores do russo no Brasil, analisa a vigorosa tradição literária da Rússia do século 19

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Rubens Figueiredo

[RESUMO] Um dos principais tradutores do russo no Brasil, Rubens Figueiredo analisa o contexto histórico e geográfico que levou à criação de vigorosa tradição literária na Rússia do século 19 e de que modo a compreensão desse processo guia importantes escolhas da tradução.

A necessidade, a vontade de trabalhar e um incrível lance de sorte se combinaram de tal modo que, entre os cento e tantos livros que traduzi, calhou de figurarem obras de Tolstói e Dostoiévski. 

Poderia acrescentar que a mesma sorte me permitiu também traduzir Turguêniev, Tchékhov, Gógol, Gontcharóv, autores russos rigorosamente do mesmo porte e peso que aqueles. Sei que “sorte” pode parecer uma palavra estranha. 

O certo, no entanto, é que tais livros e tais autores não foram recomendados aos nossos editores por meio de agentes literários com sede em Londres e Nova York, nem por artigos do New York Review of Books ou da revista New Yorker. Foi por uma via diferente, de outro teor, que chegaram até nós. Desde sua fonte, eles representam outra perspectiva, para a vida e para a história.

A partir da Rússia e do século 19, vigora uma ferrenha tradição de leituras das obras desses escritores, transmitida e realimentada de geração em geração. No conjunto, configura-se como uma espécie de polêmica global e contínua, que, na medida do possível, e não raro sem consciência disso, tenta fazer jus aos ricos debates em curso entre os intelectuais russos contemporâneos de Tolstói e Dostoiévski. Essas controvérsias originais encontram-se na raiz dos livros tratados aqui. Como tais, continuam vivas.

É bem verdade, também, que nem todas as páginas dessa polêmica subsequente foram bem escritas. Longe disso. O célebre crítico anglo-francês George Steiner, por exemplo, cruzou a fronteira da falsificação histórica ao afirmar que o Grande Inquisidor, do romance “Os Irmãos Karamázov”, de Dostoiévski, era a imagem de ninguém menos que Tolstói. 

O mesmo fez o biógrafo americano Joseph Frank, quando, contra todas as evidências, classificou Dostoiévski de “moderado” e “democrata”. É como se tais críticos ocupassem um território estrangeiro e plantassem, nesse solo bárbaro, por cima das figuras supostamente confusas que ali encontraram, os marcos de sua cultura esclarecida e superior. 

Por outro lado, é bom lembrar, a Igreja Ortodoxa Russa, uma expressão nacional por excelência, não ficou muito atrás, ao manter Tolstói excomungado até hoje e dificultar a edificação de monumentos e a comemoração dos cem anos da morte do autor, em seu próprio país. 

No fundo, tudo isso vale como o maior dos elogios a esses escritores, pois, sem querer e por linhas tortas, dá um testemunho fiel de sua incômoda vitalidade histórica.

Alguém poderia argumentar que questões dessa ordem são alheias ao estrito trabalho da tradução. Pois, afinal, trata-se de uma operação que se passa no terreno específico dos sistemas linguísticos, dotados de leis próprias e, no fundamental, fechadas em si mesmas. 

Bem, quem acredita a sério nisso deveria tentar traduzir, de olhos bem abertos, um bom punhado de páginas dos nossos autores e ver no que dá. Pois os clássicos russos, em geral, parecem feitos de encomenda para pôr em dúvida as ambições da burguesia europeia (e de seus herdeiros históricos) de projetar seus interesses determinados e locais como valores universais, desprovidos de todo fundo histórico. 

Mas não digam também que isso é culpa dos intelectuais russos. A posição histórica (e geográfica) da Rússia praticamente os obrigava a relativizar, de algum modo, o conteúdo colonizador e colonialista disfarçado naquele ideário de progresso.

 
Fernanda Giulietti

Sei que há décadas se pesquisa a sério, na Rússia, a questão central da formação da literatura naquele país. Pelo pouco que leio e ouço, sei também que há muitos pontos controversos e que não cabem, por ora, e muito menos da minha parte, afirmações categóricas. 

No entanto, ainda me parece mais produtivo postular que a literatura (essa criação europeia mais ou menos do século 17 e 18) chegou ao Império Russo como um produto pronto, descarregado de um navio, a exemplo de algumas estátuas e quadros usados na construção de São Petersburgo a partir dos primeiros anos do século 18.

A imagem pode lembrar algo que é costume dizer sobre a formação da literatura no Brasil. Porém, se a semelhança existe, ela acaba aqui, pois a Rússia nunca foi uma colônia. Embora invadida incontáveis vezes ao longo de muitos séculos, a Rússia ou expulsou os invasores ou assimilou-os à população autóctone. 

Sobre esse pano de fundo de longo prazo, creio que podemos fazer uma ideia menos abstrata do problema histórico que a literatura comportava, por ocasião de seu desembarque naquele país.

O fato é que a sociedade russa recebeu, adotou, usou e abusou da literatura não só como instrumento da afirmação do país para si mesmo e os demais —a exemplo de Inglaterra, França, Espanha etc.—, mas também, sobretudo, como forma de autoconhecimento e arena de debates sobre o destino do país. 

Esse segundo aspecto, por si só, perturbava bastante a noção original de literatura como arte, vigente nos países originais da burguesia. Ocorreu que as novas circunstâncias permitiram que as obras lançassem raízes muito mais fundas nos processos históricos do que seus modelos europeus sonhavam ser possível ou mesmo desejável. 

De outro lado, impuseram aos intelectuais russos um questionamento igualmente profundo sobre a própria literatura. Embora acolhida com todo entusiasmo em seu novo território, ela não podia, ao mesmo tempo, deixar de ser vista, em boa medida, como um elemento invasor.

Aqui, podem dizer: sim, pode ser, mas o que a tradução tem a ver com isso? Pois bem. Quem ler “Crime e Castigo” talvez repare num trecho em que os heróis Razumíkhin, Raskólnikov e sua irmã Avdótia Románovna discutem o sonho de montarem, juntos, uma editora. 

Para publicar o quê? Vejamos: “O principal alicerce da empresa é que nós vamos saber exatamente o que é preciso traduzir”, diz o frenético Razumíkhin. E também: “Guardo em segredo duas ou três obras que só a ideia de traduzir e publicar já poderia render uns cem rublos por livro”. 

Isso significa que eles mesmos não têm o que dizer? Não é tão simples assim. Pois páginas antes, ao censurar Raskólnikov, o mesmo Razumíkhin vitupera: “Pois bem, se você não fosse um burro, um burro como qualquer outro, um burro dos pés à cabeça, uma tradução de uma língua estrangeira...” Repetindo: “uma tradução de uma língua estrangeira”. 

Há, portanto, sinais claros de que a relação entre o estrangeiro e o nacional abriga uma dinâmica bem mais complexa. Não menos complexa do que aquela existente entre o traduzido e a tradução.

De outro lado, quem ler os primeiros capítulos de “Guerra e Paz”, de Tolstói, vai reparar que, sobre uma sólida base em língua russa, estendem-se manchas de idioma francês, pronunciadas por russos e pessoas de várias nacionalidades. Tudo respingado por palavras e nomes próprios italianos, alemães, ingleses etc. 

No meio de tudo isso, vagueia um dos protagonistas do romance, o jovem Pierre Bezúkhov, que acabou de voltar da França para a Rússia e cujo o próprio nome conjuga o francês e o russo. O mesmo personagem que, páginas depois, vai acusar sua “falta de costume de falar em russo a respeito de temas abstratos”. Ou seja, um problema de tradução. 

Mas será um problema técnico? Quem sabe uma questão de algoritmo? Claro, essas coisas existem e são importantes. Vamos, nós também, dar um passo para o lado, na geografia e na história, e ver o caso de outra perspectiva. 

Quando o personagem Liévin, em “Anna Kariênina”, de Tolstói, põe em dúvida a necessidade de construir ferrovias (na realidade, tratava-se de grandes empreendimentos estrangeiros, na Rússia), e quando o protagonista de “O Jogador”, de Dostoiévski, pergunta por que o jogo seria um meio de ganhar dinheiro pior do que o comércio, ambos têm plena consciência de que aqueles que os escutam vão achar isso absurdo. 

E quem os escuta, vale a pena sublinhar, são em sua maioria estrangeiros, no caso do romance de Dostoiévski, e russos sob forte pressão ocidentalizante, no de Tolstói. 

Então por que eles falam assim? Na verdade, à custa de um profundo esforço intelectual, ambos os personagens procuram se colocar do outro lado do absurdo, lá de onde a lógica dos verdadeiros opressores revela seus interesses crus e adquire a feição da impostura. 

Algo que estes opressores, se quiserem, hoje como antes, poderão ver nesse estranho espelho erguido à sua frente, dentro da moldura reconhecível da sua literatura. Em outras palavras, algo que eles poderão ler nessa tradução feita pelos escritores russos —uma tradução que eles, os donos dos originais, por assim dizer, não encomendaram, não desejavam e que, pensando bem, de lá para cá, tanto têm se empenhado em tomar nas mãos e ler ao contrário.

Não cabe aqui apontar exemplos empíricos, passagens e casos individuais de tradução. O que eu pretendia dizer neste texto é que uma visão crítica geral, enraizada em relações e processos históricos concretos, será o guia, se não de todas, ao menos de muitas escolhas e decisões do tradutor. Não raro, as mais importantes. Sobretudo, mas não só, em se tratando dos escritores russos. Foi o que a sorte, essa clandestina infiltrada na máquina dos anos, me permitiu aprender. 


Rubens Figueiredo traduziu, entre outros, os clássicos russos “Guerra e Paz” e “Anna Kariênina” (ambos de Tolstói) e “Crime e Castigo” e “O Jogador” (ambos de Dostoiévski).

Ilustração de Fernanda Giulietti, designer gráfica.

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