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Arte é liberdade, e é disso que tantos têm medo, diz Christiane Torloni

Atriz lembra as viradas em sua carreira e sublinha a importância da expressividade corporal do ator

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Christiane Torloni

Tive a sorte de nascer numa família de artistas. Apesar de nunca ter feito escola de arte dramática, nasci dentro de uma. Minha mãe trabalhava no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) —éramos muito pobres, como todos os que viviam só de teatro 50 anos atrás. Por isso, logo meu pai bandeou para o lado da produção.

Então, cresci no meio de um playground de grandes atores. Desde a mais tenra idade, me lembro de ver Ítalo Rossi, Fernanda Montenegro, Paulo Autran. Assistia a mamãe [a atriz Monah Delacy] e Leila Diniz vestidas de freira e falando loucuras na TV Tupi. Essas inspirações vieram de forma muito natural, como memórias de infância.

Essas pessoas todas deixaram suas impressões digitais em mim —apesar de meus pais não quererem que eu fosse atriz de jeito nenhum. Sérgio Britto queria me colocar como uma das crianças na primeira montagem de “A Noviça Rebelde” no Brasil. Minha mãe proibiu. Fui formada para ser tudo, menos uma artista.

Então dei uma volta enorme, fui estudar sociologia, para só depois dizer “não, não tem como não ser atriz”. E tive oportunidade de estrear já nas mãos de Marília Pêra, em “As Preciosas Ridículas”, de Molière.

Isso tudo sempre me deu a sensação de que os grandes artistas não estão num pedestal: basta chegar perto deles. Por exemplo, José Possi Neto era um sujeito que me inspirava desde que vi “Lilith, a Lua Negra”, um espetáculo incrível que ele fez no final dos anos 1980. Era teatro e dança, só, sem diálogos.

Logo pensei que faria de tudo para trabalhar com esse cara. Eu já fazia preparação corporal para entrar em cena como atriz, mas não como uma atriz que dança. Sempre tive a sensação de que o corpo era uma das linhas da partitura e, quando assisti a “Lilith”, identifiquei ali o teatro que eu queria fazer.

Possi se tornou meu grande diretor e inspirador. Nosso primeiro trabalho juntos foi “O Lobo de Ray-Ban” (1988), a montagem seguinte dele, sobre um texto de Renato Borghi.

Raul Cortez, que dividia cena comigo, foi outra grande inspiração. Um ator de enorme potência emocional, sexual, artística. Montamos a versão feminina, “A Loba de Ray-Ban”, em 2009, e eu deixava um retrato dele no meu camarim. Sabia o texto inteirinho de cor por me lembrar do Raul fazendo o personagem.

Minha atuação ficou muito mais leve depois desse ponto de virada. Você percebe que tudo tem que vir do mesmo lugar: quando criança, você aprende a se movimentar antes de falar. Quando o ator fica muito mental, focado no texto, ele vai pesando cada vez mais, até parecer uma jaca em cena.

É preciso leveza para ser dramático. E para isso, o treino é essencial. Estamos na terceira montagem de “Master Class”, dirigida pelo Possi, e continuo em uma sala de ensaio, com meias longas e joelheiras, como se estivesse começando.

Essa ideia de se mexer ininterruptamente em cena, andando sem marcas, vem do meu trabalho com o Possi. Meus espetáculos com ele foram todos de um teatro muito físico: em “Salomé” (1997), eu parecia estar andando sobre a água.

Para mim, é um tipo de teatro que comunica mais com as pessoas e expressa melhor minhas necessidades emocionais. Às vezes, a palavra é pesada, e o sensorial a transporta. Sem que o público perceba, o texto está sendo entregue por uma outra ferramenta: as sensações. Assim, quem está vendo não precisa se preocupar com “ter que entender” a peça: ele a sente. E tem a vida inteira para entender.

O trabalho do ator tem que estar atrelado à dança, tendo o corpo e a música como um caminho só de expressão artística. E por ironia do destino, agora que os musicais estavam indo tão bem no Brasil, produzindo coisas magníficas em São Paulo, vemos esse retrocesso todo.

Você passa anos aprimorando as leis de incentivo à cultura, que precisam sempre ser aprimoradas, passa anos negociando com empresas e mostrando a elas a importância desse incentivo —um dever, pois sem cultura não existe identidade— e agora as vemos com medo de ter seu nome associado a uma lei que acabou satanizada.

A arte é uma ciência política, e afinal não tem como não ser. É um fórum por onde passam as grandes ideias, onde se toca a filosofia, onde há liberdade de pensamento. Acho que é disso que tantos têm medo. 


Christiane Torloni, atriz, apresenta temporada de “Master Class”, em que interpreta Maria Callas, de 1º a 4/8 no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo.

Depoimento a Walter Porto.

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