'Chernobyl' propaga desinformação científica, diz físico

Henrique Gomes critica a possibilidade de série funcionar como propaganda antinuclear

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Henrique Gomes

"Chernobyl" é um merecido sucesso em termos de qualidade artística, mas esse êxito contém um efeito colateral: pode funcionar como propaganda contra o uso da energia nuclear. Três contrapontos bastam para neutralizar esse resultado indesejável.

Primeiro, é preciso dispersar a névoa de desinformação. Apesar do que a série faz crer, o número de mortes devido ao desastre não teve escala catastrófica. Morreram, lamentavelmente, dois operários e 24 bombeiros logo após a explosão, mas a maioria dos afetados sobreviveu à contaminação.

Registrou-se só um tipo de câncer —o de tireoide, causado pela ingestão de iodo radioativo—, cuja incidência aumentou. Calcula-se que tenham sido cerca de 5.000 casos adicionais, levando, na estimativa mais alta, a 160 mortes. Muitas delas poderiam ter sido evitadas pela simples ingestão de pílulas de iodo comum. Não houve aumento significativo nas taxas bases de câncer, aborto espontâneo ou deformidade fetal. 

Mas o erro científico mais grave da série (ou dos cientistas da época?) foi representar a contaminação radioativa como contagiosa. Em certo trecho, a personagem de Emily Watson afasta o marido contaminado de sua esposa grávida, como se a cada momento juntos o risco de “contagiar” o bebê com radiação aumentasse. Isso é implausível: o simples banho tomado pelos bombeiros na vida real os livrou dos elementos ativamente radioativos.

Segundo, é preciso dizer que a produção de energia por usinas nucleares é, de longe, a forma mais segura, mesmo incluindo fontes renováveis. A conta é feita em termos de mortes por terawatt-hora (tWh) e considera todo o ciclo de cada fonte, da construção à operação. 

Essa disparidade causa surpresa porque subestimamos a eficiência energética de usinas nucleares. Outras fontes implicam riscos indiretos que muitas vezes ignoramos.

Um exemplo são as inúmeras mortes provocadas pela queima de combustíveis fósseis. Quanto mais substituímos o carvão, menos poluído fica o nosso ar. Estudo recente estima que, nesse caso, a energia nuclear já salvou cerca de 1,84 milhão de vidas.

Além disso, a segurança da energia nuclear avança a largos passos. A usina de Tchernóbil não tinha nenhum complexo de contenção. Novas usinas incorporam mecanismos adicionais de segurança, podendo até “reciclar” o lixo radioativo de usinas mais antigas.

Ok, combustíveis fósseis são um alvo fácil hoje em dia, mas, e os renováveis, como ficam? Isso nos traz à terceira e última pílula de neutralização da propaganda antinuclear: apesar de ainda ser favorável às usinas nucleares em vários aspectos, a comparação com renováveis não é necessária. 

A produção de energia nuclear é contínua e consistente, ainda que abaixo da demanda. A produção de energia eólica e solar é intermitente, e precisaria então ser “estocada” para uso. Só que ainda estamos longe de desenvolver formas de estocar a quantidade de energia necessária. 

Por ora, não se coloca a escolha entre nuclear e renováveis; elas têm funções diferentes na infraestrutura energética. Mas há uma escolha entre nuclear e carvão. 

Na série, um cientista afirma: “toda mentira que contamos gera uma dívida com a verdade. Mais cedo ou mais tarde, essa dívida é paga”. Mentiras sobre o perigo nuclear servem de munição para continuar nossa dependência de combustíveis fósseis. Se não corrigirmos essas mentiras, a dívida logo será paga por todos nós.


Henrique Gomes, físico e colunista da Folha, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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