Descrição de chapéu Homem na Lua, 50

De Méliès a Kubrick, veja as maiores odisseias do cinema no espaço

Sonho de desbravar o espaço alimentou clássicos da ficção científica nas telas

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canhão no olho da lua

Cena mais célebre de 'Viagem à Lua' (1902), de Georges Méliès Photo12

[RESUMO] Do pioneirismo feérico de Georges Méliès, em 1902, ao rigor científico e filosófico estabelecido por Stanley Kubrick seis décadas depois, o sonho de explorar o espaço e chegar à Lua alimentou clássicos da ficção científica no cinema, espelhando utopias e temores da humanidade em períodos marcantes do século 20.

As viagens espaciais são um dos temas mais identificados com a ficção científica. Partir à conquista do desconhecido, enfrentar e superar riscos para triunfar é uma fórmula duradoura. A novidade veio na forma de tecnologias que atualizaram o imaginário, convertendo navios em espaçonaves, substituindo ventos e correntes marítimas pela potência de foguetes e atrações gravitacionais. Como a Lua parecia próxima a olho nu, chegar lá não seria um projeto tão estratosférico. 

A aceleração tecnocientífica modificou o horizonte da ficção, que a incorporou a suas projeções de futuro. O cinema, que nasceu como triunfo da técnica, antes de ser admitido entre as artes, identificou nos livros de ficção científica material para fantasias.

“Mas é de mão dupla a influência entre o imaginário literário e cinematográfico e os eventos da corrida espacial”, observa Alfredo Suppia, pesquisador de ficção científica e professor da pós-graduação em multimeios da Unicamp. 

“A função do gênero é criar narrativas de familiaridade com situações que ainda não existem, mas que podem vir a acontecer. E há uma especulação, uma ficcionalização sobre uma base de conhecimentos científicos correntes, pois os filmes mais relevantes tiveram consultores científicos em suas equipes.”

Quando o cinema imaginou sua primeira viagem espacial, a pretensão não era antecipar o futuro, mas tentar reproduzir o sucesso de histórias que atraíam muito o público da época. “Viagem à Lua”, feito por Georges Méliès em 1902, marca o surgimento do gênero ficção científica no cinema e tem em sua gênese pelo menos três textos.

Os elementos astronáuticos vieram do romance “Da Terra à Lua” (1865), no qual Júlio Verne descreveu o lançamento de um projétil por meio de um canhão. O close enorme da Lua como uma cara humana inspira-se nas ilustrações de “Voyage Dans la Lune Avant 1900”, livro para crianças escrito por A. de Ville d’Avray em 1895.

A concepção visual dos selenitas que ameaçam os membros da expedição liderada pelo professor Barbenfouillis (interpretado pelo próprio Méliès) baseia-se na ilustração de capa da edição francesa do livro “Os Primeiros Homens na Lua”, que H.G. Wells começou a publicar na forma seriada em revistas britânicas nos últimos meses de 1900. 

A criatura meio homem, meio caranguejo inspirou o figurino excêntrico dos habitantes do reino lunar que repelem os humanos invasores. Esses alienígenas anunciam as figuras monstruosas de “Alien” (1979),  “E.T.” (1982), “Marte Ataca!” (1996) e “Independence Day” (1996), cuja estranheza nasce da desproporção de cabeças, olhos e membros.

Méliès esbanjou fantasia nesta pioneira viagem sideral, mas não se preocupou com a autenticidade científica de sua ficção. Apenas a gravidade foi respeitada, num quadro em que a cápsula é puxada com uma corda e atravessa o plano na vertical, antes de cair no oceano. Essa seria a única imagem “antecipatória” do filme, embora o modo de composição da cena dê maior ênfase aos peixinhos e às bolhas de ar. 

O sucesso de “Viagem à Lua” foi tamanho que o próprio Méliès se autoplagiou com “Viagem Através do Impossível” (1904). A Pathé, estúdio de cinema concorrente, não quis perder a corrida e investiu em “Viagem em Volta de uma Estrela” (1906), “Excursão à Lua” (1908) e “Viagem a Júpiter” (1909), produções que mimetizam o estilo feérico de Méliès, que atuava como ilusionista antes de se dedicar ao cinema.

A aventura lunar narrada por H.G. Wells inspirou outras adaptações para o cinema. A primeira, feita em 1919, é considerada perdida. Em 1964, Ray Harryhausen, o grande mago dos efeitos especiais, valorizou uma refilmagem que adota o padrão de bom acabamento do cinema popular britânico. A versão mais recente, produzida pela BBC em 2010, é mais modesta.

Viajar à Lua e encontrar criaturas alienígenas, no entanto, perdeu o sentido após a mortandade da Primeira Guerra Mundial, quando o poder letal das armas alterou a percepção dos riscos. A ficção científica deixou de ser vista como um gênero de evasão e assumiu a tarefa de impor questões ao futuro.

“Para a mente humana não existe o nunca, somente o ainda não”, anuncia um letreiro na abertura de “A Mulher na Lua” (1929). Dois anos depois de revolucionar a ficção científica com o futurista “Metrópolis” (1927), o austríaco Fritz Lang aproveitou a estrutura de produção do estúdio alemão UFA para reinventar o filme de viagem ao espaço. A personagem em destaque no título fica dividida entre dois homens e exige acompanhá-los em uma aventura trepidante até a Lua.

No extenso trecho ambientado no espaço, Lang recupera o espírito serial de seus primeiros trabalhos. O dado de antecipação mais conhecido do filme é o uso de uma contagem regressiva na sequência do lançamento do foguete. 

“Quando filmei o lançamento do foguete tive uma dúvida: se contasse um, dois, três, quatro, dez, 50, cem, o público não saberia em que ponto ocorreria a decolagem. Mas, se contasse ao contrário, ficaria evidente”, explicou o cineasta. 

Além dessa inovação, o filme foi um dos primeiros a se preocupar com a credibilidade científica. Um exemplo aparece durante a apresentação do projeto para investidores, na qual Lang inseriu uma animação que explica como o foguete chegaria à Lua e de lá retornaria.

Lang se entusiasmou pelo tema depois de ler “De Foguete ao Espaço Interplanetário”, livro controverso publicado pelo físico Hermann Oberth em 1923. O nome de Oberth aparece nos créditos do filme como consultor científico. A UFA destinou um valor da verba publicitária para que ele desenvolvesse um foguete que seria lançado pouco antes da estreia. 

Embora o plano não tenha sido concluído, um nome da pequena equipe dedicada a ele chama a atenção: Wernher von Braun, que se tornou indissociável da corrida armamentista e espacial nas décadas seguintes.

Depois de participar do desenvolvimento do V-2, foguete de longo alcance que assegurou a supremacia bélica dos nazistas, Braun se bandeou, no pós-guerra, para os Estados Unidos, onde participou do projeto dos foguetes Saturno, que levaram a missão Apollo à Lua.

Os custos mais elevados de produção forçaram a retração da ficção científica na década e meia seguinte.

O impacto visual do gênero exige a construção de cenários elaborados e o uso em maior escala de efeitos especiais como maquetes, miniaturas e pirotecnia, além de performances extraordinárias de dublês.
Heróis como Flash Gordon e Buck Rogers deram o salto dos quadrinhos para o cinema nos anos 1930, mas os seriados de cinema eram produções baratas, tendo como alvo um público juvenil menos exigente quanto à verossimilhança. 

Nos anos 1930 e 1940, a recessão global e as consequências imediatas e prolongadas da Segunda Guerra adiaram a eclosão da ficção científica para o período pós-atômico, durante o qual os medos evidentes e latentes encontraram definitivamente no gênero um meio de expressão.

Dois filmes lançados nos EUA no verão de 1950 “inventam” a corrida espacial no cinema e definem os elementos com que o imaginário estético absorve, confunde-se e ultrapassa o avanço tecnocientífico. 
“Destino à Lua”, dirigido por Irving Pichel, e “Da Terra à Lua”, por Kurt Neumann, são as primeiras reações de Hollywood ao artigo “Rocket to the Moon”, publicado em janeiro de 1949 na influente revista Life, que anunciava “a viagem do homem ao satélite da Terra dentro de 25 anos”.

“Da Terra à Lua”, produção barata e independente, narra as peripécias da tripulação de uma espaçonave lançada rumo ao satélite, mas que acaba atraída pela gravidade de Marte, onde encontra ruínas de uma civilização aniquilada por uma guerra nuclear. O roteiro, escrito e não assinado por Dalton Trumbo, uma das vítimas da perseguição à “subversão” movida pelo senador republicano Joseph McCarthy, alegoriza os riscos do poder baseado no armamentismo.

“Destino à Lua”, por sua vez, adota um discurso de temor ao “perigo vermelho”, à ameaça de os soviéticos chegarem antes e instalarem no satélite uma base de onde poderiam controlar toda a Terra. Somente a aliança entre um militar, um engenheiro e um empresário permite contornar as limitações impostas pelo governo.

A colaboração de Chesley Bonestell, artista gráfico pioneiro em arte astronômica, agrega realismo e espetacularidade aos cenários lunares. A representação das diferenças de gravidade, os figurinos dos astronautas e uma sequência de perigo no exterior da espaçonave são aspectos que transformariam o filme em um marco da corrida espacial no cinema. “Este é o fim de um início”, diz o letreiro final.

O pesquisador Alfredo Suppia ressalta que essa longa viagem cinematográfica rumo à Lua não se limitou às produções norte-americanas. “O bloco soviético e mesmo o Japão também contribuíram com uma variedade de filmes, pouco conhecidos do público, extremamente engenhosos e criativos em sua visão da corrida espacial”, observa.

Entre seus preferidos, destaca “Planeta Bur” (1962), do russo Pavel Klushantsev —longa que depois foi remontado nos EUA, dublado e lançado, inclusive no Brasil, com o título “O Planeta Pré-Histórico” (1965)—; “Viagem ao Fim do Universo”, dirigido em 1963 pelo tcheco Jindrich Polák; e o polonês “Test Pilota Pirxa”, dirigido por Marek Piestrak dez anos depois do homem na Lua.

Em Hollywood, o tom triunfalista do início dos anos 1950 não durou. Logo as alegorias do medo ganharam corpo em tramas recorrentes de invasão alienígena, como “A Guerra dos Mundos” (1953) e “A Ameaça Que Veio do Espaço” (1953), e de distúrbios provocados pela falta de controle da ciência ou pela energia atômica, como “O Mundo em Perigo” (1954) e “O Incrível Homem que Encolheu” (1957).

O grande passo do cinema rumo ao universo só veio na década seguinte, com “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968). Um ano antes de o astronauta Neil Armstrong converter seu pequeno passo em salto para a humanidade, voos tripulados e homens em órbita já não eram mais fruto da imaginação. Assim, o cineasta Stanley Kubrick e o escritor Arthur C. Clarke estavam livres para reinventar um gênero no qual as perguntas não precisam de respostas.

Ciclo de filmes celebra 50 anos da chegada à Lua

No próximo sábado (20), o CineSesc, em São Paulo, exibirá, às 17h, “O Primeiro Homem” (2018), de Damien Chazelle, biografia do astronauta Neil Armstrong. Em seguida, às 20h, haverá sessão conjunta de “Viagem à Lua” (1902), o clássico curta de Georges Méliès, e “Os Eleitos” (1983), longa de Philip Kaufman que retrata a formação do programa espacial americano.


Cássio Starling Carlos, jornalista e crítico de cinema, é organizador e editor das coleções de cinema da Folha. Escreveu o livro “Em Tempo Real” (Alameda), a respeito dos impactos das séries de TV nas narrativas audiovisuais.

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