Ex-chefe do NYT analisa em livro a revolução digital no jornalismo

Embora acusada de plágio, autora apresenta reportagem séria, escreve Álvaro Pereira Jr.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

[RESUMO] Ex-editora-executiva do New York Times analisa em livro as transformações —e os muitos estragos— que a revolução digital provocou no jornalismo. Embora acusada de plágio, autora apresenta reportagem séria, com profunda visão do todo.

O nome do livro é “Merchants of Truth” (mercadores da verdade), mas poderia ser “ilusões perdidas”. Trata das transformações, ou estragos, que a revolução digital provocou no jornalismo.

A autora, Jill Abramson, 65, conhece como poucos os bastidores dessa indústria. No auge de uma carreira de muito destaque, chegou a editora-executiva (o cargo máximo) do jornal mais influente do mundo, o The New York Times.

Permaneceu no cargo de 2011 a 2014, quando foi abruptamente demitida pelo então publisher do diário, Arthur Ochs Sulzberger Jr. No livro, ela não foge desse tema espinhoso, que aborda com muita franqueza.

Com bastidores saborosos, muita reportagem e não menos análise, Abramson acompanha, no livro, a trajetória recente de quatro veículos. Dois da chamada “nova mídia”: BuzzFeed e Vice; dois da mídia tradicional: The Washington Post e The New York Times.

Fundado em 2006, o BuzzFeed é um site originalmente de Nova York que hoje tem braços no mundo todo (inclusive no Brasil). Foi criado já no universo digital, primeiro como um compêndio de listas e testes divertidos, depois também como um site de notícias de qualidade.

A canadense Vice era uma revista de papel, moderna, chocante e desaforada, antes de fincar sede em Nova York e tornar-se o maior império de vídeos para jovens do jornalismo mundial.

Já Washington Post e New York Times são os dois jornais mais prestigiosos dos EUA. Cada um teve sua trajetória —ambas duras e pedregosas— para se adaptar e, sobretudo, sobreviver no universo digital.

Difícil pensar num tema atual da comunicação que não apareça neste livro. Eis alguns pontos abordados:

a) A dolorosa transição que os veículos impressos tiveram de fazer para áudio e vídeo, essenciais na web;

b) As questões de assédio moral e sexual no ambiente de trabalho (neste quesito, a Vice é a mais citada, mas sobra até para o NYT);

c) As temidas métricas da internet, que indicam quantas vezes um texto foi acessado, até qual linha a pessoa leu, quanto tempo passou lendo;

d) O ambiente de “multitasking”, em que o jornalista tem de blogar, tuitar, escrever a matéria em si, filmar, fotografar, postar no Instagram e ganhar o mesmo salário de um jornalista “normal”;

e) As fake news, que empesteiam o mundo virtual, sem que o leitor/espectador se dê conta de que são mentiras deliberadas;

f) A completa dependência, por parte dos sites, de que suas notícias sejam distribuídas por redes sociais; uma pequena mudança no algoritmo do Facebook faz com que as notícias sumam dos feeds dos usuários;

g) E, principalmente, o grande dilema: como ganhar dinheiro com notícias na internet. Hoje, NYT e Post cobram por assinaturas digitais e vão bem. Mas, como o livro explica, nem sempre foi assim. 

À beira de quebrar, o Post foi salvo em 2013, quando a família Graham, dona do jornal desde 1933, vendeu-o para o homem mais rico do mundo, Jeff Bezos, criador da Amazon.

O New York Times, que vinha em má situação financeira, conseguiu em 2009 um empréstimo de US$ 250 milhões do bilionário mexicano Carlos Slim (Abramson revela que outro magnata, Warren Buffett, também foi cogitado, mas Arthur Sulzberger acabou não o procurando). Foi a salvação do jornal, e Slim ainda teve lucro.

Em todas as análises, Abramson se mostra uma jornalista, por assim dizer, ortodoxa. Seu foco de interesse são as chamadas “hard news”, de política e economia: furos, reportagens exclusivas, longas, de apuração demorada, que vencem prêmios e transformam seus autores em estrelas (“star reporter” é uma expressão muito repetida no livro).

Ela também é ortodoxa na defesa de uma separação completa entre as áreas editorial e comercial. Bate muito, e com força, no modelo de negócios do BuzzFeed e da Vice. Eles ganham dinheiro, sobretudo, com agências de publicidade internas, que, basicamente, aceitam qualquer negócio e atuam em conjunto com a Redação, produzindo o chamado “branded content”.

No “mainstream”, NYT e Post, que acabaram embarcando nessa, pelo menos sinalizam claramente o “branded content” como o que é: publicidade. Já na Vice e no BuzzFeed, isso é muito menos claro. “Reportagens” pagas por marcas são misturadas a material jornalístico. Abramson rejeita todo tipo de relação assim, seja qual for o veículo.

Embora se dirija ao público em geral, o livro é especialmente interessante para jornalistas e estudiosos da comunicação. Por exemplo, ao descrever como os pilares do jornalismo tradicional foram sendo destroçados pelo imediatismo da internet. Abaixo, dois exemplos.

Lei básica: os editores determinam a hierarquia do noticiário —os assuntos principais, as notas pequenas, quais reportagens terão fotos, quais só trarão textos. Mas aí vem o BuzzFeed e destrincha a cabeça do leitor (consumidor?) num procedimento muito mais próximo da neurociência. Escolhe seus temas não pela cabeça dos editores, e sim a partir de estudos matemáticos do que atrai mais leitura e é mais compartilhável em redes sociais.

Outra regra jornalística que parecia inquebrável: um enviado especial ao exterior deve ter profundo conhecimento sobre a situação que vai cobrir. Mas aí chega a Vice, mandando moleques inexperientes para os piores confins de mundo —e eles metem o pé na lama, no esgoto e trazem ótimas reportagens, que ganham prêmios.

Para o Post e o NYT, a trajetória foi no sentido oposto. As regras na internet, naturais para BuzzFeed e Vice, precisaram ser inculcadas na marra na mentalidade dos jornalões. Por exemplo, persuadir os jornalistas das antigas de que o ciclo jornalístico agora era de 24 horas, sem o tradicional horário de fechamento (conclusão de uma edição). Ou que os sites deveriam ter vida própria, e não ser simples cópias do jornal de papel daquele dia.

Também não foi fácil convencer os jornalistas tradicionais de que os jornalistas nativos de internet eram tão qualificados quanto eles. E que uma homepage era tão ou mais importante que a primeira página de um jornal de papel.

Essa transição do papel para o online está no centro da crise que acarretou a demissão de Abramson. Ela dirigia o NYT quando vazou um relatório interno que repercute até hoje. Era assinado por Arthur Gregg (“A.G.”) Sulzberger (que viria a suceder o pai como publisher). Criticava ferozmente a lentidão do jornal para abraçar as inovações digitais. 

Abramson se sentiu traída, primeiro porque ela mesma tinha indicado A.G. para comandar o grupo que produziu o texto. Além disso, ela estava muito empenhada na unificação das Redações digital e do impresso. Achava que vinha agradando, mas duraria pouco no cargo.

Abramson também não poupa seu sucessor, Dean Baquet, que antes foi seu vice e, segundo ela, conspirou com o dono do jornal para derrubá-la, na base do “ou ela ou eu”. 

Post, BuzzFeed e Vice colaboraram oficialmente com o livro, abrindo as portas das Redações e permitindo que seus líderes dessem entrevistas. Ironicamente, só o NYT, o jornal que Abramson dirigiu, se negou a ajudar. As informações referentes a ele foram obtidas graças a suas relações pessoais.

Em vista disso, “Merchants of Truth” poderia ser um desaguadouro de ressentimentos. No entanto, é um livro sóbrio e generoso, de implacável visão crítica, mas que também reconhece muitos méritos nos quatro veículos estudados. 

A primeira tiragem sofreu críticas fortes, reconhecidas pela autora, de que muitos trechos, principalmente nos capítulos sobre a Vice, eram tirados de outros artigos e livros sem a devida atribuição. 

O alerta foi dado por funcionários da própria Vice. Incomodados com o viés crítico de Abramson, começaram a escarafunchar o livro em busca de problemas. Abramson tem ligado pessoalmente para se desculpar com os autores que copiou, prometendo dar os créditos merecidos nas próximas edições.

São problemas reais, mas que não diminuem “Merchants of Truth”, um livro-reportagem sério, com muitos “insights” e uma profunda visão do todo. E que, com otimismo, conclui: só o bom jornalismo pode vencer as fake news. 


Álvaro Pereira Júnior, jornalista, é repórter da TV Globo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.