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Filme de Kiarostami me despertou para a arte, diz Gabriel Mascaro

Cineasta iraniano contribuiu na compreensão de tempo e narrativa do diretor de 'Divino Amor'

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Gabriel Mascaro

Um filme que me despertou para a arte foi "Five" (2003), do iraniano Abbas Kiarostami. São cinco blocos de câmera fixa, sem personagens, sem atores, quase uma observação de situações banais da natureza.

É uma experiência radical de anti-narrativa, da possibilidade de articular uma junção de acontecimentos aleatórios de modo que se comece a entrar então numa experiência completamente narrativa

Para mim, foi uma porrada. Senti que fui conduzido a uma experiência cinematográfica de outra ordem, que tem como fundamento a ruptura da tradição narrativa, mas leva a intensificar a força dos microeventos.

Por exemplo: um dos blocos mostra um coletivo de patos andando na orla de uma praia. São minutos e minutos de patos passando. É muito pato, muito pato, muito pato, quando de repente... Fica só um. Ele dá meia volta. E começam a voltar todos.

patos na orla do mar
Cena do filme "Five" (2003), de Abbas Kiarostami - Reprodução

Através do extracampo, você consegue imaginar que o primeiro da ponta começou a voltar e estamos observando o último que, vendo isso, também começa a retornar. E essa repetição serial num espaço que tinha um vetor de imagem quase gráfico, da esquerda para a direita, vira-se em sentido contrário.

Não sei qual foi o processo de Kiarostami, mas é de uma engenharia de espaço-tempo que beira a perfeição matemática, o controle total da observação natural. É de uma engenhosidade, de uma sofisticação criativa, de um rigor absurdo.

Não parece nada controlado, mas é justamente nesse lugar que você passa a especular sobre se há um controle absoluto do cineasta. Tem algo de clínico e preciso que é contrário à ideia de descontrole --que faz o filme atuar num duplo entre controle e descontrole.

Esse trabalho surge quando Kiarostami começa a atuar no circuito das instalações, da videoarte, e passa a radicalizar ainda mais sua linguagem. Seu filme é dedicado a Yasujiro Ozu, uma homenagem ao diretor japonês de "Era uma Vez em Tóquio" (1953). 

Quando vi "Five", eu estava começando. Não tenho família intelectual, venho de classe média baixa e não tive cinefilia na minha formação de juventude em Pernambuco. 

Com uns 22 anos é que começo a despertar para a possibilidade do cinema, e já vem uma vontade de desbravar. Diferentemente dos realizadores que consomem todos os clássicos e querem fazer filmes baseados em seu repertório de infância, foi uma descoberta mais tardia, mas também de filmes mais radicais.

Outra coisa muito especial na minha formação autodidata e um tanto caótica foi que, na primeira vez em que vim a São Paulo, por sorte acontecia o Festival Videobrasil. De cara tive contato com uma mostra que rompe com a ideia de tradição narrativa do cinema, aberta ao audiovisual em sua forma mais diversa.

Foi muito especial que minha descoberta do audiovisual não tenha sido pela cinefilia tradicional, mas afetada por todos esses outros contextos de produção de imagem e som. Então desenvolvi menos medo de decepcionar meu cânone imaginário. A criação surge despretensiosa, ainda que tenha vigor pessoal.

Sempre acreditei na força da experiência que a imagem é capaz de gerar. Nos meus filmes "Boi Neon" (2015) e "Divino Amor" (2019), há longos planos sem cortes, que começam e terminam sem introduções, sem reações dos personagens, sem a condução da emoção pelo corte.

Esses filmes acreditam que o tempo-espaço fílmico é de partilha. Não me basta o prazer ou a dor do personagem, quero também que haja tempo suficiente para que isso reverbere no espectador.

Se a masturbação do cavalo ou o sexo com a grávida em "Boi Neon" fossem rapidinhos, seriam só cenas engraçadas, brincadeiras. O tempo em cena é que faz com que aquilo sirva para partilhar uma vivência humana --acessar a experiência de forma conjunta com o personagem.

O tempo é tão generoso que você cria desde uma relação de distanciamento metalinguístico, que o faz pensar sobre aquele processo, até uma entrada de fato no que os personagens estão vivendo.

Assim se transforma algo que poderia ser ordinário em arquetípico, universal. É só importante que isso emane genuinamente do trabalho, que não seja para se filiar a um dogma do cinema contemporâneo. É tão vital pensar de onde se observa a cena quanto qual quantidade de tempo dedicar a ela, de forma que aquilo transcenda. 


Gabriel Mascaro é cineasta. Seu filme "Divino Amor" foi exibido nos festivais de Sundance e Berlim e está em cartaz nos cinemas.

Depoimento a Walter Porto.

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