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Música erudita renunciou à liberdade e ficou refém do jazz

Boa parte da produção atual se contenta com a segurança de um som amigável, diz escritora

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A tradição tem apenas uma armadilha: a preguiça do bonito. O artista que não procura romper atavismos pode fazer coisas mais belas do que aquele que busca rompê-los, já que à dedicação sempre se revela o caminho. No entanto, essa garantia pode restringir a compreensão da própria beleza.

No caminho da música, por exemplo, a segurança de um som amigável tem feito de grande parte da produção erudita uma refém bem tratada das harmonias do jazz.

trompetistas tocando
O franco-libanês Ibrahim Maalouf se apresenta no Festival de Jazz de Nice, no último dia 19 - Valery Hache/AFP

Que isso aconteça aos Estados Unidos, pode-se entender, uma vez que a arte costuma compreender o modo como um povo percebe seu território no tempo, mas não se compreende que aconteça à toda parte. A alternativa da erudição à novidade de Schoenberg e à parcimônia do minimalismo não pode se esgotar na harmonia do sul norte-americano, nascida da fusão da música africana com a europeia. 

Se considerarmos o incremento na harmonia, promovido pelos jazzistas, como a última contribuição à experiência do tonalismo na erudição, devemos reconhecer no jazz a palavra definitiva sobre os sons que queiram ser harmônicos e complexos? 

De fato, a parte dos compositores eruditos contemporâneos que recusou a homogeneidade, atonal ou minimalista, tem mantido a segura sofisticação do jazz, acrescentando-lhe, apenas, cor local. 

No Brasil, nota-se isso num nacionalismo jobiniano que nunca passa. Uma beleza inesperada, repetida muitas vezes, não deixa de ser beleza, mas deixa de ser inesperada.

O que seria da música erudita se a admiração de Beethoven por Mozart e Haydn não explodisse no romantismo do gênio alemão? Se a arte de Berlioz tivesse um temperamento tímido? Ou se Mozart não tivesse resolvido o classicismo como Chopin fez com a dor?

Até mesmo o rock procurou no modo de pensar da música erudita a liberdade que ela parece ter esquecido ao sucumbir à maldição do jazz, insistindo em suas harmonias sem cuidar dos demais elementos da música.

O compositor erudito Flávio Villar Fernandes sempre chama a atenção para a defasagem de mais de cem anos na conformação da orquestra, que deveria incorporar novos timbres, como acontecia a cada novo instrumento até o fim do século 19, a fim de explorar o universo irrestrito da música erudita. 

Embora a ideia de um belo erudito já esteja sedimentada, não seria possível fazer uma nova música, independente das novidades do século 20, que revolvesse tudo, até mesmo os naipes? Afinal, não tem bastado a mera inclusão de timbres que remetam à contemporaneidade no meio do todo vetusto, ou mesmo orquestras tocando músicas populares. Todas essas invasões imprudentes podem servir à bilheteria, mas não têm servido em nada à música. 

A realidade erudita não pode ter morrido no século 20. A visão museológica da orquestra e a imprescindível apreciação dos clássicos não deveriam sugerir a impossibilidade da atualização, nem que o novo seja ainda a menina dos olhos da academia. 

A música erudita não deve costurar, com a complexidade do jazz, o pouco fôlego do minimalismo e os muitos satélites do atonalismo, uma camisa de força cujo arremate sejam as mesmas programações que só fazem aumentar o tédio. 

Talvez a música erudita tenha desistido de novos clássicos por não mais se popularizar, como aconteceu a tantas obras. O compositor erudito Flo Menezes, em seu academicismo, advoga o divórcio entre o erudito e o popular, entendendo-o irreversível desde a música de vanguarda.

Não acredito, porém, que haja arte popular que não possa participar do erudito. Não fosse assim, não seria arte, seria qualquer outra coisa feita pela necessidade, pelo hábito ou à toa. Contudo, não é assim; ela é qualquer coisa que agrada e descola-se do natural, do vulgar e do fácil. 

Por sua vez, se a erudição quiser, como uma bailarina, equilibrar-se na ponta de sua gelidez, sem qualquer humanidade, sobretudo em música, não estará no espaço e no tempo da arte. Essa separação só pode trazer os prejuízos que tem trazido: intraduzibilidade, setorização, extremismos, revisitações. 

Se a música erudita continuar sendo exclusivamente isso ou aquilo, plasmando os mesmos afetos ou cumprindo protocolos, será sempre uma tentativa.

Os músicos do cenário erudito que confiaram ao jazz a responsabilidade da última beleza harmônica, como André Mehmari e Johannes Berauer, embora respirem os mesmos ares de Jobim e Piazzolla, ainda procuram fazer bonito. Do músico que só queira dificultar,  daquele que rescende a Berio e Penderecki, não se pode esperar nem deleite nem riqueza de afetos.

Continuar tecendo esse mesmo manto, tramado nos mesmos discursos, não parece bastar para cobrir a erudição que nunca envelhece, nunca se gaba de ser só, não se define pelo nome de um território ou tampouco é um desenho saudosista entre paredes de cristais. A erudição, antes de tudo, deve ter a forma perfeita da liberdade. 


Mariella Augusta Masagão é escritora e doutora em literatura portuguesa pela USP.

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