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Estupro na literatura pode reforçar intimidação da mulher, diz escritora

Amara Moira, doutora em crítica literária, discute a representação da violência sexual em livros clássicos

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Alguns anos atrás, conversando sobre Jorge Amado com uma amiga, ela me confidenciou ter interrompido a leitura de “Capitães da Areia” (1937) ao pressentir que, na sequência, haveria uma cena de estupro. Leitora ávida, ainda que de formação na área médica e sem grandes intimidades com o debate feminista, seu comentário me chamou a atenção para um ponto que eu nunca vi discutido em minha trajetória acadêmica: a representação da violência sexual na literatura.

E mais: puxando pela memória a minha própria experiência de leitura da obra, não conseguia me lembrar de um momento chocante o suficiente que me tivesse feito sequer cogitar abandoná-la.

Retorno a ela e lá estava a passagem, seis páginas de puro horror misógino e racista, com um narrador que assume a todo momento um discurso condescendente em relação a Pedro Bala (“Pensando nas nádegas reboleantes da negrinha não pensava na morte de seu pai defendendo o direito dos grevistas [...]. Para que [ela] tinha vindo de noite, para que se arriscara na areia do cais?”). 

casal sentado em píer
Pedro Bala e Dora na adaptação cinematográfica de ‘Capitães da Areia’ (2009)  - Divulgação

O herói, não contente em estuprar a menina negra sem nome e ameaçá-la com a gravidez (“Tu é um pancadão, morena. Nós vai fazer um filho lindo”), ainda se dispôs (e lhe impôs que aceitasse) a acompanhá-la até o fim do areal, para que ela chegasse em segurança (“Vou te levar para um malandro não lhe pegar”). Ela chora o percurso todo, é obrigada a aceitar que ele a tome pela mão, conseguindo no máximo, ao ver-se enfim longe e livre, voltar-se para trás, rogar pragas e correr.

O ápice da condescendência, no entanto, ocorre quando o narrador, na cena do estupro, se imiscui nos pensamentos da moça e revela-nos uma personagem amedrontada não apenas pela violência como também por, de repente, sentir “a chegada impetuosa do desejo” (“no fundo de seu terror, começava a sentir um fio de desejo [...]. Se ela não resistisse contra o desejo e deixasse que ele a possuísse, estaria perdida”). 

Pedro Bala parece não se ver como estuprador, o narrador apresenta uma série de atenuantes e, por fim, revela que ela chegou a sentir prazer, a estar em dúvida... Estamos diante de um estupro?

Como afirma Virginie Despentes ao discutir esse tipo de paradoxo em “Teoria King Kong” (2006), sobreviver a um estupro torna-se, numa sociedade regida pela lei dos homens, uma prova contra a vítima (“uma mulher preocupada com sua dignidade preferiria ser morta”) —sociedade que, além de tudo, criará essa mulher para sentir culpa pelo que aconteceu. 

Basta considerarmos o talvez mais importante comentador do nosso Código Penal (que, não nos esqueçamos, é ainda o de 1940), Nelson Hungria, para intuir o quanto isso pode ser verdadeiro:

“O dissenso da vítima deve ser sincero e positivo, manifestando-se por inequívoca resistência. Não basta uma platônica ausência de adesão, uma recusa meramente verbal, uma oposição passiva ou inerte. [...] Nem é de confundir a efetiva resistência com a instintiva ou convencional relutância do pudor, ou com o jogo de simulada esquivança ante uma vis grata, como o daquelas ninfas de que nos fala Camões [...]: ‘Fugindo as ninfas vão por entre os ramos,/ Mas, mais industriosas que ligeiras,/ Pouco a pouco sorrindo, e gritos dando,/ Se deixam ir dos galgos alcançando...’”.

Chega a ser engraçada a acusação de anacronismo quando se propõem releituras das obras a partir de debates atuais, como se tais debates não pudessem, ou devessem, transformar a maneira como compreendemos o passado.

Engraçado sobretudo quando se vê esse fragmento de Camões sendo ainda hoje trazido à baila em decisões judiciais para esclarecer distinções entre estupro e vis grata (deixo a vocês a tarefa de descobrir a que se refere o termo).

E o que diz Camões? No episódio conhecido como “Ilha dos Amores”, vemos Vênus reunindo as mais belas ninfas numa ilha e pedindo que o Cupido as fleche para se enamorarem dos portugueses antes mesmo de os verem, como recompensa por terem chegado às Índias.

Eles, no entanto, não sabem de flecha nenhuma, simplesmente se deparam com ninfas seminuas no meio do oceano Índico e saem a caçá-las com galgos (“cães de caça”), a narrativa sublinhando o tempo todo a indústria (“astúcia”) dessas ninfas. 

O fato de terem sido instruídas por Vênus a ocultarem a “flama feminina” por sob uma “pudicícia honesta” torna tudo mais nebuloso. Somos informados do fingimento das ninfas, os navegantes não. Será, aliás, confiável essa informação? Vejo uma linha direta entre o que essa narração nos diz e o que diz o narrador de Amado.

Nesse novo contato com “Capitães da Areia”, no entanto, continuei sem conseguir cogitar abandonar a leitura. A razão hoje me parece óbvia. 

Travesti que sou, tendo sido criada para ser um homem e tendo feito a transição tardiamente, minha relação com a palavra “estupro” é distinta da de minha amiga. Cresci num ambiente masculino, onde essa palavra era usada como metáfora, não raro de forma brincalhona (“estuprei a prova de matemática” ou então, frase típica em meios gays, “esse cara me estuprou gostoso”). Só após a transição conheci o medo dessa palavra, medo que a pessoa criada para ser mulher conhece desde pequena.

amara e eliana
Amara Moira (esq.) e Eliana Souza e Silva em debate no Festival Agora É que São Elas, em São Paulo - Joel Silva - 13.ago.2018/Folhapress

Não à toa o alarido, alguns anos atrás, contra a cervejaria Devassa, que patrocinou a publicação do “Manual de Boas Maneiras para Meninas” de Pierre Louÿs, onde à página 63 se lê: “Se um vagabundo a encontrar num local deserto e a agarrar, deixe que ele a foda de uma vez. É o meio mais seguro de não ser estuprada”. 

Sim, era uma ironia, o texto inteiro é uma ironia. Mas quem seria capaz de concebê-la? Para quem ela se destinaria? 

Certamente não para figuras como a menina negra sem nome estuprada nem para tantas outras que temem um dia sê-lo. Em “Against Our Will” (contra nossa vontade, 1975), uma das primeiras obras feministas a discutir a questão, Susan Brownmiller é taxativa: “[O estupro] é um processo consciente de intimidação por meio do qual todos os homens mantêm todas as mulheres em estado de medo”.

A literatura pode ser parte desse processo de intimidação. 


Amara Moira é doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp.

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