A importância dos fatos é tão grande que leitores são capazes de procurar por eles até mesmo num texto ficcional. Por vezes, vasculham relações do livro com o mundo concreto e não se satisfazem ficando apenas no mundo fictício descrito por ele.
O que o romancista Henry James chamou de “intensidade de ilusão” é eficiente a ponto de um leitor não aceitar que a obra tenha sido concebida pela imaginação de um escritor —ela só pode ser “verdade”. Para dizer de outra forma: é como se os leitores buscassem a não ficção dentro da ficção, confundindo as duas e ignorando suas distinções.
Em alguns casos, essas informações fora do livro ajudam a acessar o conteúdo dentro dele. Trata-se de uma questão dos estudos literários: até que ponto um texto deve funcionar sozinho, sem a ajuda de informações de bastidores, de pesquisas acadêmicas, de notas de rodapé?
Considere “Ulysses”, de James Joyce. A versão da Penguin-Companhia das Letras evita notas de rodapé, traz apenas uma tabela de temas e uma introdução. Ainda assim, para um romance da complexidade de “Ulysses”, nenhuma ajuda é demais.
O livro era considerado difícil para um leitor de 1922 e assim permanece para um leitor de 2019, com o agravante de que certas referências que poderiam fazer sentido para alguém que vivia na primeira metade do século 20 se tornaram obscuras e inacessíveis para o público de hoje.
Na época da publicação, o próprio Joyce se viu obrigado a dar dicas de leitura. O autor criou uma lista de temas relacionados a cada capítulo, mas ela mesma é um pouco cifrada.
A Companhia das Letras, dois anos depois de publicar a tradução de Caetano W. Galindo, lançou um guia de leitura para ajudar os desavisados, “Sim, Eu Digo Sim”, também escrito por Galindo. Enfim, o livro precisa de um manual de instruções.
Wayne C. Booth, em “A Retórica da Ficção”, diz sobre a obra de Joyce: “Em todos os estudos esquemáticos e guias escolares, parte-se abertamente do princípio de que as últimas obras [de Joyce], “Ulysses” e “Finnegans Wake”, são impossíveis de ler; só podem ser estudadas. O próprio Joyce passou a vida a explicar as obras e é claro que ele não via mal nenhum no fato de não se poder pensá-las em termos totalmente independentes. Os problemas do leitor são resolvidos, se é que podem ser resolvidos, com auxílio de retórica exterior à obra”.
A citação foi tirada do capítulo em que Booth analisa as consequências do desaparecimento do autor no texto, dos esforços do autor em apagar seus rastros, criando a ilusão de que o texto existe por si só, e não porque foi escrito por alguém. Ele usa como base de seus argumentos tanto o romance “Um Retrato do Artista Quando Jovem”, anterior a “Ulysses”, quanto “Stephen Hero”, obra autobiográfica de Joyce que teve partes publicadas postumamente e cujas ideias foram usadas em “Um Retrato…”.
Essa comparação das duas obras deu a Booth a chance de avaliar o esforço de Joyce para desaparecer do texto. O resultado, na visão dele, é que esse desaparecimento acabou comprometendo a compreensão de “Um Retrato...”, porque não dá ao leitor as informações necessárias para perceber os refinamentos almejados pelo autor.
Uma informação relevante para esse embate entre ficção e não ficção é que hoje, depois de quase um século de estudos sobre a vida e a obra de Joyce, sabe-se que “Um Retrato...” é um romance autobiográfico e que Stephen Dedalus, o protagonista que reaparece em “Ulysses”, é um alter ego do autor.
Estudiosos e leitores não hesitaram —e não hesitam— em buscar informações na vida de Joyce para entender melhor a obra. Como Booth destacou, essa busca não é apenas desejada, mas necessária em casos como o de “Ulysses”.
Alguns dos métodos de Booth são eficazes para analisar também textos de não ficção. O pesquisador estuda a neutralidade, a imparcialidade e o subjetivismo do autor — usados para medir a eficácia de um texto ficcional. São questões que pesam também sobre o jornalismo.
A profissão se debate desde sempre com ideais de imparcialidade, rechaça a opinião e a presença do autor numa reportagem. Eliminar a autoria de um texto é uma das técnicas da redação jornalística.
Os jornalistas mais experientes reconhecem que a imparcialidade é um horizonte a ser perseguido, mas nunca será atingido. Mesmo a notícia mais trivial e telegráfica tem um autor por trás dela, selecionando as informações e decidindo como reportá-las no texto.
Booth fala sobre esse componente de escolha, mas na ficção: “Toda arte pressupõe a escolha do artista. Se destruirmos a noção de escolha, é a arte que aniquilamos. A verdade é que nunca se pode silenciar a voz do autor. Não há autor que consiga criar uma obra revelando completa imparcialidade”.
Esses argumentos são bons para provar como a presença do autor é perceptível num texto. Para Booth, o juízo do autor está sempre presente, é sempre evidente a quem saiba procurá-lo. Se aceitarmos que as coisas funcionam assim em textos ficcionais, dá para entender um pouco mais do que move um escritor no jornalismo literário: ele aceita que a imparcialidade não é possível e se recusa a desaparecer no texto.
Irinêo Baptista Netto é doutor em letras pela Universidade Federal do Paraná.
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