Metalinguagem jocosa de Manoel de Barros prega peça em leitor

Versos do poeta estão recheados de explicações, mas nem por isso tornam-se mais transparentes, avalia professor

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Sérgio Medeiros

Manoel de Barros escreveu que “poesia não é para compreender, mas para incorporar”. No entanto, seus versos estão recheados de explicações, as quais tentam elucidar palavras, imagens, situações etc. que seriam, à primeira vista, obscuras ou enigmáticas demais. 

Esse inesperado didatismo pode deixar o leitor desconcertado e afastá-lo da obra, como quase aconteceu comigo na última vez em que percorri os volumes do poeta mato-grossense. Mas posso ter sido um leitor ingênuo quando acatei suas explicações como um procedimento que conferia “transparência” ao texto. 

Não é tarefa simples avaliar o papel da explicação em Manoel de Barros. O autor recorre muitas vezes a uma metalinguagem jocosa que aparentemente não almeja apenas atingir comunicação direta com o leitor, nem lhe oferecer a decifração de seu segredo poético. 

Manoel de Barros também preza o mistério e as palavras opacas, particularmente nos poemas em que lida com seu tema favorito, o abandono. É neles que discorre sobre o desaparecimento do artista moderno, que deixa atrás de si uma “arte povera”, feita de ruínas e detritos. 

A poesia é a demolição que o poema mostra, mas nos restos acumulados num terreno baldio ou num quintal selvagem algo pulsa: “Não era normal / o que tinha de lagartixas na palavra paredes”, conforme consta em “Matéria de Poesia” (1970), um dos pontos culminantes da obra de Manoel de Barros. A eloquência das lagartixas poderia remeter à obra de Antoni Tàpies, criador de quadros que parecem paredes cobertas de signos secretos, na forma de grafites inexplicáveis.

A velha parede coberta de signos é o lado mais sucinto e enigmático da estética de Manoel de Barros; o outro lado, mais verboso e prosaico, diz respeito aos diálogos que trava com seus leitores, oferecendo-lhes pistas sobre o sentido da obra.  

Num volume de 2010, “Menino do Mato”, o pequeno poeta vive numa fazenda virgem (“um lugar imensamente e sem nomeação”) e diz: “Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!”. A Mãe (com inicial maiúscula) refuta imediatamente a sentença poética: “Já vem você com suas visões! / Porque formigas nem têm joelhos ajoelháveis / e nem há pedras de sacristias por aqui.”

Ela, com essa implacável negação da fala infantil, propõe aos leitores de Manoel de Barros uma pertinente definição de poesia: uma espécie de “traquinagem” da imaginação. A Mãe talvez não quisesse reprimir o dom poético do filho, mas ela, de todo modo, alerta o leitor (também se dirige a ele) sobre o absurdo da mensagem do artista.

Mais adiante, o menino delirante esclarece que o Pai (também em inicial maiúscula) apoiava sua maneira de “desver” o mundo. Haveria então uma cumplicidade total entre os dois: “A gente não gostava de explicar as imagens porque / explicar afasta as falas da imaginação”. 

No entanto, quando o poeta voltou a contar seus delírios para a Mãe (“Um dia que outro eu contei para a Mãe que tinha visto / um passarinho a mastigar um pedaço de vento”), ela comentou, como se recitasse um mantra: “Já vem você com suas visões! / Isso é travessura da sua imaginação”. Essa crítica da Mãe denunciou, com certa dose de benevolência, a falta de sentido das palavras do filho, enquanto a presença constante do Pai incentivou suas associações “por amor e não por sintaxe”. 

Entre os comentários ácidos da Mãe e o amoroso apoio do Pai, duas fontes da poesia de Manoel de Barros, as palavras do artista maduro surgem nos livros que lhe deram fama ora sem decifração nenhuma, ora com uma indefectível explicação, a qual parece elucidar algo, ou “dessacralizar” o delírio. 
Talvez a voz materna “impertinente” não tenha sido extirpada nunca da cosmovisão do poeta; creio que, por influência dela, um dos “Poemas Rupestres” (2004) começa com uma elucidação que retira da palavra o seu mistério: “Me chamam de Antônio Carancho: / Carancho é por maneira que eu ando de pé virado / Moda carancho mesmo”. 

Como a palavra carancho nomeia uma ave de rapina também conhecida como carcará, a explicação do poeta, que se atém apenas aos pés, não parece esclarecer completamente por que o personagem se chama assim. O leitor que não se deixa enganar pelo comentário metalinguístico penetra no mistério da poesia de Manoel de Barros.

Diria, então, que a Mãe e o Pai, encarnações de forças conflitantes, estão sempre atuantes na poesia de Manoel de Barros, e que, em razão disso, nenhuma explicação que seus versos possam dar ao leitor torna-os imediatamente mais transparentes e compreensíveis; a metalinguagem materna jamais consegue, a meu ver, erradicar o delírio que corre nas veias dessa poesia. 

Se essa avaliação for pertinente, a poesia de Manoel de Barros talvez esteja imune, afinal de contas, a qualquer diluição de ordem metalinguística.

Leia poema de Manoel de Barros

V

Eles enverdam jia nas auroras.
São viventes de ermo. Sujeitos
Que magnificam moscas — e que oram
Devante uma procissão de formigas…
São vezeiros de brenhas e gravanhas.
São donos de nadifúndios.
(Nadifúndio é lugar em que nadas
Lugar em que osso de ovo
E em que latas com vermes emprenhados na boca.
Porém.
O nada destes nadifúndios não alude ao infinito menor
de ninguém.
Nem ao Néant de Sartre.
E nem mesmo ao que dizem os dicionários: coisa que
não existe.
O nada destes nadifúndios existe e se escreve com letra
minúscula.)
Se trata de um trastal.
Aqui pardais descascam larvas.
Vê-se um relógio com o tempo enferrujado dentro.
E uma concha com olho de osso que chora.
Aqui, o luar desova…
Insetos umedecem couros
E sapos batem palmas compridas…
Aqui, as palavras se esgarçam de lodo

Poema do livro “O Guardador de Águas” (1989), de Manoel de Barros


Sérgio Medeiros é poeta, dramaturgo e professor de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina. Publicou, entre outros livros, “Caligrafias Ameríndias” (Medusa) e “Os Caminhos e o Rio” (Iluminuras)

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