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Shakespeare é rio imenso de águas turbulentas, diz Daniel Dantas

Ator compara interpretar textos de grandes dramaturgos a fazer diferentes mergulhos

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Daniel Dantas

A obra sobre a qual posso falar é toda uma obra mesmo, algo que define a mim e a muita gente: a leitura de Shakespeare. Tendo a achar, como o crítico Harold Bloom, que a construção do humano é muito feita a partir dele, tanto a nossa visão de mundo quanto de nós mesmos.

Bloom diz algo curioso: afirma que Freud lia mal Shakespeare porque, se lesse bem, teria que admitir que quem inventou esse negócio de psicologia foi o dramaturgo, e não ele.

Claro que a obra shakespeariana me formou associada a todo um contexto: ao Monteiro Lobato que eu lia na infância, aos filmes que eu via, ao ambiente cultural em que vivi. Mas de certa forma, é algo que está no centro de tudo.

Por exemplo, “Macbeth” é uma peça que sempre quis fazer. E “A Tempestade”, em que atuei nos anos 1980, foi um momento bom na minha carreira, apesar de eu ter feito um papel pequeno. Era a primeira vez que meu grupo de teatro, o Pessoal do Despertar, fazia Shakespeare. Quase fiz o protagonista, Próspero, mas eu era jovem demais e achei que ia ficar meio ridículo. Acabamos oferecendo para um ator convidado.

Mas fazer “Macbeth” foi marcante, porque era um sonho. Olhando para trás, tenho orgulho do resultado dessa montagem de 2010, mesmo com a série de problemas que teve. Não foi perfeita, mas tem coisas de que me orgulho muito. 

dantas hipnotiza sorrah, deitada
Daniel Dantas e Renata Sorrah em cena de 'Macbeth', peça de 2010" - Zé Carlos Barretta/Divulgação

E é curioso que eu interpretei um ator que fazia Macbeth na minissérie “Som & Fúria” logo antes de fazer, de fato, “Macbeth”. Meu personagem começava interpretando Shakespeare do modo tradicional e era obrigado pelo diretor a descobrir que aquilo não era preciso. Ele começava fazendo a peça formalmente e acabava fazendo-a bem.

Já fiz também “A Megera Domada”, “Noite de Reis” —uma experiência desesperadora, mas boa por ter sido o momento em que trabalhei com Amir Haddad. E foi de uma leitura de “Macbeth” no Pessoal do Despertar que chegamos ao texto de “Ubu Rei”, que é a versão de Alfred Jarry para a peça. 

Na verdade, Shakespeare permeia tudo. A linguagem dele é seminal para todas as outras. Ele e os gregos clássicos são quase que uma linguagem básica do teatro.

Cada um dos grandes autores abre a você um universo completamente diferente. Cada autor é um rio. 

Lembro de me vir à mente essa comparação durante um ensaio de “Tio Vânia”. Tchékhov para mim é absolutamente cristalino, uma água aparentemente plácida, mesmo quando você está imerso nela. E não é fácil de se orientar ali, até por conta dessa clareza toda. Parece que não acontece nada, mas há um fundo psicológico conturbadíssimo, ainda que seja visível e estável.

Por outro lado, penso que, em Shakespeare, estou mergulhado em um rio imenso de águas extraordinariamente turbulentas, levado por uma corrente irresistível. Você não vê claramente o fundo nessa água turva, mas ao mesmo tempo você está imerso naquela linguagem.

dantas abraça homem
Daniel Dantas (dir.) em cena de 'Macbeth', de Shakespeare - Zé Carlos Barretta/Divulgação

É um pouco confuso, mas é como eu consigo representar visualmente o modo como eu abordo teatro. Nessa imagem, a superfície do rio é a interface, o modo como você aparece para a plateia. A água onde você está mergulhado varia de profundidade dependendo do autor; é seu universo verbal, o universo da linguagem. O fundo seria algo que para mim é menos útil como ator, mas que é essencial para várias pessoas: a psicologia do personagem.

Em certos autores, você nunca coloca o pé nesse fundo. Em outros, você precisa estar o tempo todo indo até lá embaixo para depois voltar à superfície e entender a forma como você vai usar aquilo.

Agora, estou interpretando um texto de Harold Pinter, que é tido como discípulo de Samuel Beckett. Mas acho que há uma coisa mais interessante nele que no próprio Beckett: Pinter chega ao absurdo a partir de personagens concretos, que existem. Isso obriga você a trabalhar num registro ligeiramente fora do natural, mas você não está fora da realidade. Isso, misturado com o absurdo das situações a que a peça chega, faz dela uma delícia. 


Daniel Dantas, ator, está em cartaz com a peça “O Inoportuno”, de Harold Pinter, até 29/9 no Teatro Raul Cortez.

Depoimento a Walter Porto.

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