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'Carlota Joaquina' me fez sonhar de novo com cinema, diz Karine Teles

Atriz conta que fazer filme brasileiro parecia um sonho impossível no início dos anos 1990

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Karine Teles

Foi grande a força do cinema na minha educação. Venho de classe média baixa, meus pais foram a primeira geração de suas famílias na universidade. Eles trabalhavam e pagaram a própria faculdade. Eu, depois, já consegui entrar em uma pública, a Unirio, onde fiz artes cênicas.

Meus pais tinham conhecimento cultural um pouco restrito, já que vinham de uma camada social que não tinha, absolutamente, acesso à cultura nos anos 1970. Mas mesmo assim, sempre fui incentivada a ler quando criança, e se ouvia muito música clássica em casa.

Nos anos 1980, começou a onda do videocassete. Meu pai comprou um aparelho, como um luxo, e passamos a ver muitos filmes em casa. Era forte a paixão pelo cinema ali. Tínhamos até uma brincadeira de adivinhar o que aconteceria na próxima cena —o que talvez tenha feito nascer minha cabeça de roteirista. 

Quando comecei a estudar teatro, no ensino médio, passei a pesquisar mais. Meus professores davam filmes de referência, e conseguíamos achar na locadora coisas que nem tinham sido exibidas aqui. O cinema tem essa maravilha de ser um arquivo. A experiência de assistir a um filme tem o mesmo impacto para quem está vendo pela primeira vez, seja na época que for.

Na minha infância, em Petrópolis (RJ), os filmes brasileiros a que tínhamos acesso eram os da Xuxa e os dos Trapalhões. Filmes incríveis, aliás —me lembro de ver “Os Trapalhões na Serra Pelada”, lindíssimo, e “Os Trapalhões e o Rei do Futebol”, que tinha o Pelé. 

Eles lotavam cinemas. Vi algum filme da Xuxa, acho que “Lua de Cristal”, com gente sentada no chão da sala. Quando havia filme brasileiro que de alguma forma falava da gente, todo mundo corria para ver. É nossa necessidade de se enxergar. Nós precisamos desse espelho. 

Tem se discutido muito a questão de o filme brasileiro fazer ou não bilheteria. O ponto é o modo como ele é lançado, se tem uma verba decente de marketing. As pessoas precisam saber que o filme existe. Se tivesse um filme da Marvel que não fosse anunciado, ninguém iria ver. 

Por exemplo, “Bacurau” teve na semana passada uma sessão em Barra, local onde a gente filmou. É um povoado de 30 casas, no sertão do Rio Grande do Norte, a uma hora de estrada ruim da próxima cidade maiorzinha. O filme foi divulgado, foi falado, as pessoas sabiam. E havia 2.000 espectadores na sessão.
Um filme de qualidade, bem feito em todas as etapas de produção, é algo que as pessoas querem ver. O problema é fazer chegar até elas. 

Quando comecei a ser atriz, no início dos anos 1990, eu nem sonhava em fazer cinema. Era apaixonada por isso, mas no Brasil era impossível. Havia pouquíssimos filmes por ano, geralmente com celebridades. O cinema mais autoral não chegava para mim, já que eu morava em uma cidade pequena.

Por isso assistir a “Carlota Joaquina” (1995) no cinema foi um momento incrível: uma lufada de esperança depois de um deserto sem tamanho. Eu podia começar a sonhar de novo. 

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A atriz Marieta Severo em cena de "Carlota Joaquina" (1995) - Divulgação

Lembro claramente. Eu fazia ensino médio em Maceió, junto com curso técnico de teatro. Eu e meus amigos ficamos sabendo que iam exibir “Carlota Joaquina” no Cine Arte Pajuçara, um espaço que resiste até hoje  lá —um auditório lindo com projetor, que funciona como cinema de arte da cidade. Seriam poucas sessões do filme, e foi algo parecido com um show de rock, com gente correndo para a fila para garantir ingresso.

Depois da sessão, saímos todos aos prantos. Além de o filme ser esteticamente sensacional, ele ainda me fez olhar para a história do Brasil de uma forma nova. Nas aulas da escola, os portugueses eram os heróis que civilizaram o país, daquele jeito glamourizado. Assistir a esse filme foi a primeira vez que eu tive um pensamento crítico em relação àquilo que estudava. Esse é o poder da arte.

E, enfim, pude sair dali sonhando em ser atriz de cinema. Por mais que hoje eu esteja descobrindo um grande prazer em fazer televisão, esse nunca foi meu objetivo. Comecei a estudar teatro porque aquilo era o mais próximo que eu podia chegar do cinema —afinal, eu não era nem a Xuxa nem um Trapalhão.

Depois “Central do Brasil” (1998) foi aquele acontecimento, e as coisas começaram a vir num ritmo que, hoje, podemos dizer que temos uma indústria de cinema —na qual eu mesma consegui fazer meus próprios filmes, “Riscado” e “Benzinho”, o que é mais louco ainda. Mas lendo sobre o que acontece na Ancine, com tudo muito incerto, as coisas paralisadas, acho que estamos correndo um risco de novo. 
 


Karine Teles, atriz e roteirista, fez “Que Horas Ela Volta?”, “Benzinho” e está em cartaz nos cinemas em “Bacurau”.

Depoimento a Walter Porto.

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